lobo e lua

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10.12.10

O pedreiro que tricotava

Ivani Cunha
JORNALISTA CONVIDADO

(Para meu pai)

É pouco provável que o pai do leitor ou da leitora saiba tricotar.

Trabalho, passatempo, vício, tricô é coisa de... mulher.

Meu pai, com suas mãos ásperas de operário da construção civil, ignorou esse estigma e aprendeu a dominar as agulhas de tricô. O fio de lã, passando de uma agulha a outra, permite a execução de dois tipos de ponto que servem de base a grande variedade de padrões, define o “Aurélio”. Mas a leitura do dicionário é insuficiente para alguém aprender a fazer; é preciso prestar atenção em outra pessoa que já tricota, depois treinar e treinar.

O início, para ele, foi por acaso, numa das longas fases de afastamento do trabalho motivadas pela doença de Chagas, que o levaria desta vida antes dos 60 anos.

Uma de minhas irmãs treinava com as agulhas, enquanto meu pai lia o seu jornal kardecista. Um olho nas páginas, outro nas mãos da filha, nas agulhas que iam e viam, depois voltavam ao início formando a teia.

Nos dias seguintes ele continuou a observação, sempre sentado na mesma cadeira diante da filha. Aprendeu todos os detalhes: a posição das mãos, a altura em que deveria manter a peça diante dos olhos, a trajetória das agulhas, seus volteios, quando fazer inserção única ou dupla nas carreiras, etc.

Uma tarde ele esperou a filha levantar-se da cadeira para ir à cozinha ou cuidar de outro afazer. Então pegou os novelos de lã, as agulhas e começou a atravessá-las na peça com movimentos sincronizados, comparando de tempo em tempo o resultado do trabalho com o já produzido pela titular do serviço.

Estava bem concentrado quando a dona do tricô retornou à sala. Entregou-lhe os apetrechos e, meio sem graça, reiniciou a leitura do jornal. A filha procurou algum estrago em seu tricô e não encontrou. Apenas desconfiou que não havia interrompido o trabalho naquele ponto. Se, naquele momento, tivesse prestado atenção no homem à sua frente, veria seu meio-sorriso de satisfação.Talvez até pudesse ler em seus olhos que ele achara muito mais fácil aprender a tricotar do que levantar paredes e fazer o acabamento das obras – e nisso ele era mestre.

Tricotar era bem mais fácil e deixava a cabeça leve, os problemas esquecidos horas e horas numa parte escura da memória.

Assim, ele aprendeu a produzir sapatinhos e fez um par, de lã azul-clarinha, para o primeiro neto. Depois tricotou uma blusinha de mangas compridas da mesma cor para o bebê.

Os filhos se surpreenderam só um pouco com a nova diversão do pai. Bem melhor que o vício do cigarro, cultivado desde a juventude e só abandonado poucos anos atrás, depois de muitas ameaças dos médicos.

Não durou muito o gosto pelo tricô, mas valeu como mais uma demonstração de versatilidade daquele homem que aprendeu a tocar violão de ouvido, tinha sempre um livro à mão e evitava ensinar o significado das palavras (“Meu filho, consulte o nosso dicionário e aproveite para aprender mais, lendo também o sinônimo da palavra que vem antes e o daquela que vem depois dessa que você procura”).

Desconhecia a barreira que naquela época impedia a maioria dos homens de assumir o fogão e preparava deliciosos bolos e broas de fubá no forno a lenha, e depois no fogão a gás. “Não comam quente porque terão dor de barriga”, dizia, depois de conferir o cozimento enfiando o cabo do garfo na massa, quase deixando ler em seus olhos o real objetivo da advertência, que era o de manter os apressados a distância do fogão.

Ficou também a lembrança dos escassos períodos em que meu pai, depois dos 40, tinha condições de trabalhar. Nesses dias, levantava mais cedo cantando modinhas antigas e preparava um feijão tropeiro legítimo, com todos os ingredientes proibidos pelo médico.

Nunca mais comi feijão tropeiro com aquele delicioso sabor de transgressão, e até hoje não sei de ninguém que use com a mesma competência a colher de pedreiro e a agulha de tricô.

Ivani Cunha é jornalista em Belo Horizonte

29 comentários:

Tay disse...

Um ótimo texto, adorei.

bjus =*

JuJu disse...

Está aí uma coisa interessante... Decerto muita gente ainda olharia atravessado um homem versátil assim, pois eles ainda não conquistaram de fato esse direito... Isso no mundo onde as mulheres já podem ser mais versáteis também, embora não completamente.
Talvez só tenhamos um mundo de homens e mulheres versáteis se nos livrarmos da visão que o senso comum costuma ter de ambos os sexos.
...
Passe lá no meu blog e deixe seu comentário!!!

Sônia Silvino (CRAZY ABOUT BLOGS) disse...

Bill querido!
É isso aí, amigo!!! Abaixo qualquer tipo de preconceito!!!
O ano está terminando...
Quero agradecer a você pelas alegrias que me proporcionou em 2010!
Sua participação nos meus blogs, seus comentários, suas visitas que tanta alegria trazem ao meu coração.
Desejo a você um lindo Natal, cheio de paz, saúde e felicidade!
Que 2011 seja espetacular para você!
Que continuemos e aprofundemos a nossa amizade virtual que torna tão especial e feliz a nossa vida real!
Boas Festas!!!
Beijos, muitos!
Sônia Silvino's Blogs
Vários temas & um só coração!

T. disse...

Caramba, gostei muito do texto mesmo. Vai ficar como um de meus favoritos.

Anônimo disse...

Linda mensagem. Que cena maravilhosa! A rudeza e a delicadeza nas mesmas mãos.

Nina Vieira disse...

Não, meu pai não sabe tricotar. Minha avó sabia - mas nunca tornei-me "prendada" como as moças daquele tempo.
E cada um esconde sua arte, seu passatempo. Seu pai sabia tricotar. Não haveria lisonja para os sentimentos puros maior do que essa.
Abraços.

Ruby disse...

Olha, jamais vi um homem tricotar, gostaria de presenciar tal cena. Não penso que deve ser fácil manejar aquelas agulhas, mãos femininas que tem mais habilidades algumas se dizem não aprender, imagine as masculinas. É um lindo texto de memórias.

Aracy Crespo disse...

Bill!

Cadê ocê? Eu vim aqi só pra te ver, e não te encontrei! Estava com saudades dos seus posts divertidos, assim como seus comentários!

Beijos,
Aracy.

Pamela Kenne disse...

Está aí uma das muitas coisas de que não concordo nesse mundo - homens servem para tal coisa e mulheres para outras. Sempre rotulando e rotulando, como se as coisas fossem iguais para todo mundo. Esse homem que tricotava, cozinhava, tocava violão e trabalhava fora, seria um grande herói dos dias atuais. Um grande sábio, sem preconceitos.
Meu pai cozinha muito bem, melhor que muitas mulheres (inclusive minha mãe), ele limpa toda a casa às vezes e com um capricho "feminino" incomum. E trabalha fora, em seu escritório.
Gostei muito do texto.

Janaina Cruz disse...

Ah Bill, quem usa as mãos para construir casas e muros, pode também usar para fazer coisas cinzelas... Sem falar que há o relaxamento cerebral, e uma fonte a mais de renda quem saber? rs
Não é preciso existir preconceito por coisas assim, existem muitos homens que fazem trabalhos lindos... Eu que sou mulher bem que queria aprender... :( rs
Um abraço, to seguindo seu blog.

Maria Auxiliadora de Oliveira Amapola disse...

Boa noite, querida amiga.

Nossa... Que história emocionante!
Eu viajei nesse episódio.


Um grande abraço.

paulo disse...

Dons são dons.
E quem os tem se destaca.

Abraço

Larissa disse...

que bela crônica!
:)

adorei
nostálgico... adoro isso
;*

Juliana Skwara disse...

Incrível, interessante. Muito tempo que não vinha aqui. Como vão as coisas? Bjuuus

By Ana D disse...

Tão sensivel...Reminiscências são sempre delicadas...

Tais Luso de Carvalho disse...

Realmente gostei muito de ler; homens fazendo trico? Homens na cozinha? Quanto preconceito bobo...
linda é a emoção que passa. Nossa vida vale é pelas pequeninas coisas. Vi o que estava por detrás do 'tricotar'. Um homem sensível que não sonhava com grandes coisas, apenas com o momento de fazer algo simples. Já estaria vivendo.

Ótimo Natal para você e sua família e um ano muito melhor! Obrigada pela amavel partilha neste ano que está chegando ao seu final.

beijos
tais luso

Sônia Silvino (CRAZY ABOUT BLOGS) disse...

Bill queriiiido!
Lendo as novidades por aqui
e deixando beijinhos, abraços e um pensamento:

"Minha concepção do natal, seja ele à moda antiga ou mais moderno, é algo bastante simples: amar uns aos outros. Mas, pense comigo, por que nós temos que esperar pelo Natal para agir assim?" (Bob Hope)

Com carinho,
Sônia Silvino's Blogs
Vários temas & um só coração!

marilia . disse...

muito obrigada :)
gostei !

:.tossan® disse...

Uma das coisas mais prazerosas envolvendo inteligência foi visitar sempre o seu blog que tanto gosto, Feliz Natal e Ano Novo com paz, saúde, harmonia e amor. Abraço

Carolina disse...

Oi Bill,saudades daqui!!!

bjão

Kamilla Barcelos disse...

Um pai que sabe tricotar é uma exceção. Não somente pelo preconceito, mas porque a maioria dos homens nem se interessam.
Gostei muito do texto, se é que se pode falar, foi de uma nostalgia linda.

Akire Anitsirk disse...

Eu tinha um visinho que aprendeu a bordar com a esposa, e olha que ele bordava muito bem!

Bill agora estou em novo endereço o/
htt://euphoriaon.wordpress.com
.
.
.
Bjocas

Érica Ferro disse...

Me emocionei. Tenho certeza que o pai dessa jornalista teria ficado muito contente e emocionado por ser tão amado e admirado assim.

Sônia Silvino (CRAZY ABOUT BLOGS) disse...

Bill querido!
Vim lhe visitar e trazer um convite especial para você!

"Maria e José de Nazaré
convidam você e sua família para a festa do meu aniversário.

Data: 25 de dezembro
Local: Seu Coração
Os participantes da minha festa
serão contemplados com um crédito infinito
de graças para o ano todo,
podendo sacar, diariamente,
sem limite de horário,
a soma de bênçãos de que necessitarem.

Favor confirmar sua presença
através de oração e da imitação dos meus atos.

Agradeço por todo o esforço que você fará
na preparação espiritual da minha festa!

Abraços e Bênçãos de
Jesus de Nazaré"

Sônia Silvino's Blogs
Vários temas & um só coração!

*lua* disse...

Todos nós somos muito especiais, é um apena que carregar essa carcaça de nossos corpos, nos limite a coisas de gênero ou conceitos pré-formados, impostos por uma sociedade medíocre, ou seja, mediana para com o próprio valor.

*excelente texto!

Bill tenhas uma ótima passagem de ano, e que a paz o persiga o ano todo. beijo

Magui disse...

Bela crônica e bela homenagem.Minha mãe foi exímia tricoteira inclusive na agulha circular para fazer toalhas de mesa.

Vitória Doretto disse...

Feliz Natal! =)

Sueli disse...

Emocionante pra caramba! Fiquei fã de seu pai mesmo sem tê-lo conhecido. Acho que faltou uma foto dele... parabéns pelo texto (e pelo pai). Um abração!

Anônimo disse...

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