lobo e lua

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26.12.10

Então, é Natal?!


Rúbia Gondim
BLOGUEIRA CONVIDADA

Recebi durante a semana uns 3957 e-mails, 2573 scraps, 102 mensagens no Facebook, cerca de 75409327584 tweets e algumas DMs desejando-me um “feliz Natal” em cartões enfeitados com renas, neve, o bom velhinho, dingo bells e tudo que o photoshop dá direito. Algumas (sei lá, umas 3 ou 5) pessoas citaram o nome de Jesus. Diziam eles, trocando em miúdos, que Jesus é capricorniano. Engraçado isso, porque Capricórnio é signo de quem nasce em dezembro. Ele no máximo é de Áries. Talvez meus amiguinhos tenham trocado os nomes, porque quem faz aniversário nesse dia é Mitra, um camarada chegado em vinho e pão.

Dois milênios depois que Constantino instituiu o 25 de dezembro como Natal, ver filmes hollywoodianos em que os pais dizem aos filhos que o presente embaixo da árvore de plástico foi deixado durante a madrugada por um sujeito gordo, velho e barbudo que desceu pela chaminé, virou costume. Como a vida imita a arte, essas fantasias ainda são alimentadas na cabeça dos pivetes. Mas isto traduz o espírito de abnegação do Natal, já que você se mata durante 12 meses pra comprar o presente mais caro na Ri Happy e quem fica com os créditos de bom velhinho é o Noel; você fica apenas com o nome no Serasa.

As crianças da Etiópia são malvadas, por isso ficam sem presentes no dia 25 de dezembro. Isso não importa muito, já que lá eles não comemoram o Natal. Aliás, lá eles não comemoram nada! O que há pra se comemorar ganhando U$ 94,00? Já que Noel não investe em presentes para os famintos etíopes, decidi colocar em minha cartinha um Troller T4, um Wii e um apê em Dubai. Coisinha singela para que o espírito natalino se manifeste em meu coração, assim como se manifestou no coração de Edir Macedo, Estevam Hernandes, bispa Sônia e outros corruptos universais, assembleianos, pentecostais… Só espero que Noel não seja onisciente – como o Google – senão eu fico até sem as meias que minha avó insiste em me dar todo ano, todo ano, todo ano!

Mas, o Natal tem outro objetivo além de ficar de folga, comer peru e panetone, aprontar e ficar ileso porque seus pais querem manter a harmonia familiar (pelo menos na frente dos convidados para a ceia), ganhar presentes nos N amigos ocultos que você participa (mesmo sem querer), entrar de férias e encher a cara na frente da sua sogra, sem que isso seja uma ofensa para aquela alma pura… E esse objetivo transcende todo rancor guardado em nossos corações, é maior que qualquer sentimento mesquinho e atos sujos. Devemos prestar atenção no ser magnífico, altruísta, humilde e, ainda assim, superior: o papa. Alguém lembra o nome desse cara que substituiu o João Paulo II? Seja quem for, não quero ele entrando de madrugada na minha casa, ainda mais se tiver alguma criancinha por perto. Michael Jackson que me livre!

Rúbia Gondim pode ser encontrada aqui.

10.12.10

O pedreiro que tricotava

Ivani Cunha
JORNALISTA CONVIDADO

(Para meu pai)

É pouco provável que o pai do leitor ou da leitora saiba tricotar.

Trabalho, passatempo, vício, tricô é coisa de... mulher.

Meu pai, com suas mãos ásperas de operário da construção civil, ignorou esse estigma e aprendeu a dominar as agulhas de tricô. O fio de lã, passando de uma agulha a outra, permite a execução de dois tipos de ponto que servem de base a grande variedade de padrões, define o “Aurélio”. Mas a leitura do dicionário é insuficiente para alguém aprender a fazer; é preciso prestar atenção em outra pessoa que já tricota, depois treinar e treinar.

O início, para ele, foi por acaso, numa das longas fases de afastamento do trabalho motivadas pela doença de Chagas, que o levaria desta vida antes dos 60 anos.

Uma de minhas irmãs treinava com as agulhas, enquanto meu pai lia o seu jornal kardecista. Um olho nas páginas, outro nas mãos da filha, nas agulhas que iam e viam, depois voltavam ao início formando a teia.

Nos dias seguintes ele continuou a observação, sempre sentado na mesma cadeira diante da filha. Aprendeu todos os detalhes: a posição das mãos, a altura em que deveria manter a peça diante dos olhos, a trajetória das agulhas, seus volteios, quando fazer inserção única ou dupla nas carreiras, etc.

Uma tarde ele esperou a filha levantar-se da cadeira para ir à cozinha ou cuidar de outro afazer. Então pegou os novelos de lã, as agulhas e começou a atravessá-las na peça com movimentos sincronizados, comparando de tempo em tempo o resultado do trabalho com o já produzido pela titular do serviço.

Estava bem concentrado quando a dona do tricô retornou à sala. Entregou-lhe os apetrechos e, meio sem graça, reiniciou a leitura do jornal. A filha procurou algum estrago em seu tricô e não encontrou. Apenas desconfiou que não havia interrompido o trabalho naquele ponto. Se, naquele momento, tivesse prestado atenção no homem à sua frente, veria seu meio-sorriso de satisfação.Talvez até pudesse ler em seus olhos que ele achara muito mais fácil aprender a tricotar do que levantar paredes e fazer o acabamento das obras – e nisso ele era mestre.

Tricotar era bem mais fácil e deixava a cabeça leve, os problemas esquecidos horas e horas numa parte escura da memória.

Assim, ele aprendeu a produzir sapatinhos e fez um par, de lã azul-clarinha, para o primeiro neto. Depois tricotou uma blusinha de mangas compridas da mesma cor para o bebê.

Os filhos se surpreenderam só um pouco com a nova diversão do pai. Bem melhor que o vício do cigarro, cultivado desde a juventude e só abandonado poucos anos atrás, depois de muitas ameaças dos médicos.

Não durou muito o gosto pelo tricô, mas valeu como mais uma demonstração de versatilidade daquele homem que aprendeu a tocar violão de ouvido, tinha sempre um livro à mão e evitava ensinar o significado das palavras (“Meu filho, consulte o nosso dicionário e aproveite para aprender mais, lendo também o sinônimo da palavra que vem antes e o daquela que vem depois dessa que você procura”).

Desconhecia a barreira que naquela época impedia a maioria dos homens de assumir o fogão e preparava deliciosos bolos e broas de fubá no forno a lenha, e depois no fogão a gás. “Não comam quente porque terão dor de barriga”, dizia, depois de conferir o cozimento enfiando o cabo do garfo na massa, quase deixando ler em seus olhos o real objetivo da advertência, que era o de manter os apressados a distância do fogão.

Ficou também a lembrança dos escassos períodos em que meu pai, depois dos 40, tinha condições de trabalhar. Nesses dias, levantava mais cedo cantando modinhas antigas e preparava um feijão tropeiro legítimo, com todos os ingredientes proibidos pelo médico.

Nunca mais comi feijão tropeiro com aquele delicioso sabor de transgressão, e até hoje não sei de ninguém que use com a mesma competência a colher de pedreiro e a agulha de tricô.

Ivani Cunha é jornalista em Belo Horizonte