lobo e lua

lobo e lua

19.3.10

Pergunte ao Bigô

Ivani Cunha
JORNALISTA CONVIDADO


Já escrevi sobre o Aristides (Tide) da Margarida, um dos personagens inesquecíveis da minha infância na Vila Nova Esperança dos anos 50. Naquela crônica, concentrei-me nas travessuras do homem com alma de moleque, que não dispensava uma boa birita, amava a música e o ofício de treinar cães de caça. Mas, ao contar aqueles casos, veio-me também à memória o filho dele, Luiz “Bigô”.

Imagino que o menino tenha desenvolvido, desde muito novo, uma rara capacidade de abstração, pois conseguia dormir nas madrugadas de festa em sua casa. Não era uma casa de muitos cômodos; portanto, onde estivesse, a música e as risadas estariam sempre bem perto. É certo que Bigô sempre conseguia adormecer antes daquele momento terrível em que começava uma briga qualquer, talvez por causa de algum sujeito atrevido que resolvera dançar um pouco mais agarrado com a mulher... do outro. Talvez por outro motivo, do qual ninguém se lembraria algumas horas depois.

Nunca soube por que a briga sempre envolvia o Aristides. Acho que, na tentativa de apartar os brigões, ele acabava ofendendo um deles, ou quem sabe exagerava ao exigir respeito. Mas, ora bolas, ele era o dono da casa. Depois, como eu já contei, a história se repetia: aparecia o Tide gritando da cerca, ou diante da porta da cozinha de nossa casa, que havia alguém no seu calcanhar com uma faca.

Bigô dormia.

Acordávamos bem cedo no domingo, e também nos outros dias, como se tivéssemos de atender a alguma obrigação. Mas a nossa agenda era sempre a mesma: conversar fiado lá no fundo do quintal, apoiados na cerca de arame farpado. Do lado da minha casa havia uma pequena horta, um galinheiro e, mais abaixo, um espaço para o lixo. Eu disse lixo, mas para o Bigô e para mim, às vezes, aquele espaço era uma espécie de despensa ao ar livre. Um dia pegamos ali uma garrafa de Biotônico Fontoura que se encontrava pela metade e a entornamos goela abaixo de uma só vez. Em outra oportunidade, saboreamos uma lata de doce de leite quase cheia – depois, é claro, de afastar centenas de formiguinhas que se deliciavam com a guloseima. Estava um pouco azedo, mas desceu bem.

Não sentimos sequer uma discreta dor de barriga depois dessas e de outras estripulias gastronômicas no fundo do quintal. Benditos sejam os mecanismos de defesa que Deus coloca no organismo das crianças.

Bendita seja também a camaradagem e, mais do que isso, a cumplicidade existente entre as crianças. Minha relação com Bigô foi marcada por muitos atos de cumplicidade, mas eu destaco um, na poeira dessas histórias que se passaram há meio século.

Um dia, eu brincava com o meu estilingue no alto da escada que ligava a cozinha ao quintal. Bigô estava lá no fundo do lote deles. O amigo me desafiava a acertar uma lata no meio do lixo e eu já havia feito várias tentativas, todas em vão. De repente, uma galinha – a mais bonita, a melhor poedeira do quintal – atravessou distraída na linha de tiro. A pedra acertou-lhe em cheio o papo. A ave não conseguiu dar nem mais um passo. Caiu morta.

Bigô pôs a mão direita na cabeça, a esquerda na boca, e com o olhar admitiu que já estava com pena de mim, pois certamente eu levaria a maior surra de vara de marmelo da minha vida.

Fiz, com o dedo indicador sobre os lábios, o clássico sinal de pedir segredo sobre aquele desastre.

Algumas horas depois, minha mãe descobriu o corpo da gorda galinha no quintal: “Quem diria que essa galinha fosse adoecer e morrer assim de uma hora para outra, não é?” Em seguida, ordenou que eu jogasse a ave num buracão no fim da rua, pois havia o risco de contaminação de todo o galinheiro.

A verdade sobre a morte daquela galinha seria revelada uns 40 anos depois do incidente. Eu mesmo já não tinha nenhum filho com a idade em que cometera a travessura, e minha mãe, então uma criaturinha frágil, incapaz de empunhar uma vara de marmelo, disse que eu estava inventando história...

– Pois então pergunte ao Luiz Bigô... – respondi.

Ivani Cunha é jornalista em Belo Horizonte

41 comentários:

Desabafando disse...

rsrsrs...adorei a história! Tanto tempo depois a mentira virou verdade.

Érica Ferro disse...

Hahaha...
Que legal!
Gostei de Ivani e sua historinha.
Muito boa de ler, aliás.
E pergunte ao Bigô, rs.

Atreyu disse...

Já gostei desse nome de cara! Bigô!
rsrsrsrsrsrs
gostei do humor inteligente daqui! =D

Mayara Cunha disse...

"Um dia pegamos ali uma garrafa de Biotônico Fontoura que se encontrava pela metade e a entornamos goela abaixo de uma só vez." NOOOSSA KKKK, ficaram com uma fome de leão! ahahah

Kkkkkkkkkkkkkkkk “Quem diria que essa galinha fosse adoecer e morrer assim de uma hora para outra, não é?”
morri de rir com esse conto! ameii!

beijos!

T. disse...

Esse vi junto de outros no meu caderno.
Muito bom.
hehehe eu tenho essa capacidade. Mesmo depois de mais velha eu ainda durmo em festa, e sem beber.
hehehe tb já fiz mta arte no galinheiro de vó. A maioria ela descobriu que fui eu na hora. tomara que rendam boas histórias no futuro.
Abraçoss

Unknown disse...

Muito boa a história. Remete qualquer leitor à sua infância, com uma naturalidade incrível.
Provoca também saudades da simplicidade daqueles tempos, dos apelidos engraçados...
Muito legal.
Beijos

Vanuza Pantaleão disse...

Agora, comigo, são 6 "fala que eu te escuto", rsrs.
Vara de marmelo(ainda tem marmelo?), Biotônico Fontoura, Crush (não lembra?).
E os quintais? Os terrenos baldios onde tinha flor de mato que a gente devorava. Já comeu flor do mato, Bill? Hoje, se você comer um inocente tomatinho sem lavar no vinagre vai parar no CTI.E morre.
Bom camarada o Bigô, pode crer!
A gente acordava cedo porque, sei lá porque!
Vou voltar pra cama...
Beijinhos mil no Bill!!!

Anônimo disse...

Muito boa a história! "Oh que saudades que tenho da aurora da minha vida..." Eram outros tempos mesmo. Gostei.
Beijo grande, já virei tua seguidora, rsrsrs

Patrícia Andréa disse...

Mto bom!

Lilá(s) disse...

Gostei deste momento de agradável leitura.
Bjs

Cadinho RoCo disse...

Depois de tanto tempo pra quê acreditar?
cadinho RoCo

Sônia Silvino (CRAZY ABOUT BLOGS) disse...

Recordar coisas boas, é ser feliz duas vezes!
Bom domingo, meu querido!

Memórias de Donha Baratinha: a baratinada, cascuda e sobrevivente disse...

Este texto me fez lembrar de como é bom ser criança... e depois de como é melhor ser adulta e não correr o risco de levar uma surra de vara de marmelo!
Bjuxxx

JuJu disse...

E, também, o crime prescreveu: Passaram-se mais de vinte anos. Você não poderia mais ser punido pela morte da galinha.
...
Passe lá no meu blog e deixe seu comentário!!!

Anônimo disse...

Bill,muito bem escolhida sua história!Fiquei com pena da galinha,mas antigamente os meninos faziam cada coisa com esses estilingues!Excelente texto,muito bem escrito e que prende nossa atenção!Parabéns!Abraços,

Fran Carneiro disse...

adorei. haha.
que tipo de lembrança gostosa.

Laís disse...

own,que bonitinho.Já fiz várias vezes o clássico sinal de pedir segredo,ainda faço,é claro.HEHE.
beeijo

Unknown disse...

rsss, a parte mais lindinha é mesmo tua mãe, te achando um menino tão bom, não acreditar na história. Que graça!

Cris Medeiros disse...

Oi querido! Respondendo seu comentário, eu posso até fazer um post sobre o BBB, mas certamente será algo bem ruim... rs... Porque esse foi o segundo BBB que vi integralmente e me arrependi demais! Realmente é uma droga, do tipo cocaína, heroína e similares... rs

Beijocas

Barbara disse...

Bendita camaradagem
Bendita infância
Bendita a mãe - ora, meu caro amigo, não conheces as mães?

Pena é que a galinha não virou canja, porque galinha de quintal é tudo de bom.

Lilá(s) disse...

Gostei, uma histórinha com humor vai sempre bem depois de um dia de trabalho.
Bjs

Josy Poulain disse...

Ás vezes eu tenho inveja (boa, claro) de não ter tido um pouco dessa infância frente a essa nossa geração de BBB's e video games.

Ótimo texto.

Eduardo Bispo disse...

KKKKKK Devia ser uma delicia aquele fundo do quintal....o leite condençado...manhanmnahanmanhan

Ana Gotz disse...

kkkkkkkk
sempre bom passar por aqui!
boa leitura na certa!

Sonia Schmorantz disse...

Quero ser o teu amigo. Nem demais e nem de menos. 
Nem tão longe e nem tão perto. 
Na medida mais precisa que eu puder. 
Mas amar-te sem medida e ficar na tua vida, 
Da maneira mais discreta que eu souber. 
Sem tirar-te a liberdade, sem jamais te sufocar. 
Sem forçar tua vontade. 
Sem falar, quando for hora de calar. 
E sem calar, quando for hora de falar. 
Nem ausente, nem presente por demais. 
Simplesmente, calmamente, ser-te paz. 
É bonito ser amigo, mas confesso é tão difícil aprender! 
E por isso eu te suplico paciência. 
Vou encher este teu rosto de lembranças, 
Dá-me tempo, de acertar nossas distâncias...
Fernando Pessoa

Um domingo de paz e amor junto aos seus!
abraço

C. Vieira disse...

Olá, Bill, do melhor e mais engraçado jornal da blogosfera!
O blog Dominus em parceria com a Loja do Altivo estará sorteando o livro O Último Trem Para Istambul de Ayse Kulin. Participe!
http://dominus-dominique.blogspot.com/2010/03/loja-do-altivo-dominus-enviam-o-ultimo.html

Um abraço pra ti!

AFRICA EM POESIA disse...

Bill
Concordo contigo
O mau tem que ser acompanhado...
para ti um beijo e...

Adorei passar por AQUI...

CORRE



Corre...
Vai correndo...
E tenta agarrar...
Tudo o que encontras...
Depois... pára...
E vê o que agarraste...
O bom e o mau...
E escolhes...
E deixas o mau...
E pegas no bom...
Mas... será assim?
Eu sei que é assim...
Mas pergunto...
E deveria ser assim?
Sei que não...
porque o bom...
Todos o querem...
Mas o mau...
Que deveria ser...
A nossa prioridade...
Para podermos mudar...
Fica só...
Sem ninguém que o queira...
E vai continuar...
A ser mau...
E muitas das vezes...
Pior!...

LILI LARANJO

Unknown disse...

Nossa! kkk, adorei a história! Sabe o que é mais engraçado? crianças de interior, que crescem no campo até hoje, gostam de aprontar assim, a minha infância foi de certa forma bem travessa tbem, sorte minha que eu tinha ótimos cúmplices rsrsrs
obrigada por visitar e comentar em meu blog fiquei muito feliz! volte sempre que quiser e puder, bjos!
bjo

Obs: não sei por que, mas adorei o nome do blog!!! rsrsrsrsrsr

Ava disse...

Bill, voce é o melhor contador de causos por aqui...rs

Infeliz da galinha, que foi atravessar sua "linha de tiro". rs

Saudades, meu amigo, de uma mesa de bar, um bom papo, sem preocupação com mais nada...


beijos meus!

Tati Lemos disse...

Nossa, adorei aqui esse seu cantinho!
Meu sonho era ser possuida por um demônio, ou ver uma menina de branco!
aaah poderia ser tmb um dos meus antepassados!

Beijosgrandes

Géssica disse...

Obrigado. Adorei saber que gosto do blog. Epode deixar eu vo continuar sim!
- certa vez eu quebrei um negocio da geladeira, todos os finais de semana me oferecia pra limpar a geladeira pra que minha mae nao percebesse, eu contei 6 meses depois - gostei do seu post


até...
ps: se cuida

Paula Teles disse...

adoreeei o blog, o texto então também adoreei. Beeeijos e estou seguindo já.

Mariposa disse...

hahuahuaahuahuahua
gente vc escreve muito bemm
gostei da historia mesmo
beijos

Anônimo disse...

Quanto Luiz Bigô existem por ai? As histórias de infância que o digam!

Dani Pedroza disse...

É engraçado como o tempo tem o poder de amenizar certas coisas, como a morte da galinha. E engrandecer outras, como a consciência de uma bela amizade. O fato é que tudo e todos nós estamos à mercê dele. Bjs.

Anna Vitória disse...

Adorei a crônica! Gosto demais desses casos de infância, dessas pessoas que passam pela nossa vida... Me lembrou minha relação com um primo meu, parceito de brincadeiras, detentor dos meus piores segredos, haha!
Beijos

Magui disse...

òtima crônica.E, esta experiência de viver um fato para desvendar o seu segredo quatro décadas depois é ótima.Convidado de primeira.

Anônimo disse...

Muito bom, e é assim mesmo!! rs
beijos

Anônimo disse...

Muito bom, e é assim mesmo!! rs
beijos

Aracy Crespo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Ivani é o bom.
Deveria voltar à mídia aberta