Chico P.F. (Francisco Paula Freitas - não confundir com Francisco Freitas, nosso pinguço colunista anti-social)
Aviso aos navegantes: como o conto é muito grande (mas ótimo, como vocês verão), nós o dividimos em três partes. Assim, vocês podem ler por capítulos, se preferirem, ou se o tempo estiver curto, beleza?
PRIMEIRA PARTE
Meu único interesse era encher o pandulho. Pequenino, vovó me amamentava junto com seu filho mais moço. Eu, depois me disseram, alisava seu peito tão carinhosamente que ela se deixava a sorrir e o leite escorria para minha boca enquanto meu tio esperneava e chorava na outra mama por não conseguir sugá-la. Azar o dele. Até os oito anos, fui um menino gordo e guloso. Os fatos aconteciam ao redor de mim, sem que eu me importasse.
Vejo hoje que meu avô, até o dia em que meu pai morreu, era um homem feliz. Dominado pela mulher, nunca bateu ou ralhou com qualquer um de seus muitos filhos. Para fazer aquela casa, vendeu o que conseguira juntar pela vida. Quadros, vasos, porcelanas, tapetes, uma ou outra escultura, colunas de alabastro, lustres e pratas. Torrou tudo e trocou por terreno, tijolos, areia e cimento. Não quis saber do areal de Copacabana e tolo, achando-se sábio, escolheu o seu terreno em Todos os Santos, lá nos cafundós do Judas.
Aos poucos foi erguendo o que, eu não cheguei a conhecer, mas diziam, era uma casa tosca, rústica mesmo. Pouco mais que um barracão, onde abrigou a mulher e a filharada. Em pouco tempo, era a casa mais bonita da rua, onde eu, minha irmã e um outro neto dele, filho de uma tia, nascemos. Eu nunca soube por que, após a morte do meu pai, minha mãe sumiu. Só aparecia de vez em quando para me ver. Mais a mim que a minha irmã. Acho que minha avó não gostava dela. Com meu pai morto, a vida apertou. O dinheiro, coisa que até então nunca vira, ao desaparecer me fez perceber o que valia. Minhas roupas foram acabando, vivíamos quase em trapos. Por causa de uma banana, cheguei a dar um empurrão na minha irmã. Ela quebrou o braço, a banana ficou comigo.
Se não fosse tão ingênuo e sentimental, meu avô, primeiro não teria comprado o terreno e construído no subúrbio e sim na zona sul. O que podiam valer florezinhas e abacateiros baldios comparados ao futuro de Copacabana? Depois não teria abandonado a casa apenas porque meu pai lá morreu. Todo mundo vai morrer um dia, certo? O sentimentalismo fez ele prometer nunca mais voltar lá. Vendeu-a por dezessete contos. Valia mais de cem!
Ameaçou e cumpriu. Não voltou. Alugou uma casa em uma vila no Lins de Vasconcelos. Iríamos mudar. Vovô teve de entregar a casa e lá fomos eu e a família aos pobres, morar em uma das muitas casas daquela vila de merda. Quando cheguei, olhei e pensei logo. Não vou gostar daqui. Imaginem o que são dez pessoas enfiadas em dois quartos, na verdade cubículos, duas salas e um quintalzinho de seis por oito. Acho que meu avô era maluco.
Um quarto foi reservado para ele e minha avó. O outro ficou com minhas tias solteiras e minha irmã. A sala da frente, atravancada com os móveis da casa antiga, ficou sendo a sala de visitas. Na outra, a de trás, a de jantar. À noite, era um tal de fazer camas pelo chão entre os armários, embaixo da mesa, onde houvesse um cantinho havia uma cama improvisada. Nessa sala dormiam meus quatro tios e eu. Era muito ruim, fazia um calor insuportável, não havia o mínimo conforto.
Para me livrar daquilo, o jeito era chorar, e eu chorava. Acordava todo mundo e mentia, dizia que tinha medo, que lá havia uma assombração. Fazia tanto barulho que ou minha avó ou uma das tias me levava para cama. Quando era a tia Orquidéa eu gostava mais. Ela me apertava, me beijava, eu sentia o seu cheiro e o meu pinto endurecia. Uma vez fui com a boca e chupei o peito dela. Ela se tremeu toda. Fiquei assustado, mas gostei. A cama era boa, ela me fazia cafuné e aí, naquele bem-bom, eu dormia. Se chovesse, melhor ainda, o sono era embalado pelos pingos caindo lá fora sobre o fundo de uma lata emborcada. O resto, inclusive o tio da minha idade, ficava lá pelo chão mesmo, junto às pulgas, os percevejos e as baratas...
Da escola, quando chegou o momento, eu não gostava. Ia a contragosto. Logo impliquei com uma aluna, que estava fazendo ponta no lápis. Eu me encaminhei em direção a ela, junto à cesta de papéis que ficava ao lado do quadro-negro, atrás da mesa da professora, e fiquei lá fazendo também a minha ponta. Quando nos viu, a professora mandou o que veio depois sentar e esperar a sua vez. Eu disse cheguei primeiro. A menina, indignada, fez-me uma cara de ódio e desferiu uma giletada que resultou em um talho profundo nos meus dedos médio e anular. O sangue esguichou. Essa era pior que eu! Me levaram a um quarto cheio de remédios onde fizeram o curativo. A aula foi suspensa, os pais da garota chamados, e ela foi ameaçada de ser expulsa.
Fiquei uns dez dias em casa colocando sulfanilamida. No quinto, o corte estava quase fechado, mas aproveitei para choramingar e não voltar à escola. Mingau na cama era muito melhor que levantar cedo.
Rapaz, iria exibir a cicatriz e, dependendo da ocasião, dizer que fora o que em verdade fora, que eu dera na cara de um sujeito ou que levara uma navalhada de um malandro na Lapa. Enfim, eu iria contar a história que me desse na telha, desde que me fosse mais conveniente.
Para não ir ao colégio, mentia. Se a merenda do dia fosse macarrão com salsicha, aí mesmo não ia de maneira alguma. Voltava. Dizia que chegara atrasado e não me deixaram entrar. Até hoje não suporto macarrão. De salsicha, tenho nojo. Inventava que os garotos maiores me batiam, que a professora não gostava de mim. Minha avó ficava com pena e eu ficava. Desde pequeno não gosto de aglomerados. Prefiro andar sozinho, e me sinto melhor na espreita, vendo, do que sendo visto. Na vila era melhor, podia soltar pipa, tomar as dos meninos menores, surrupiar figurinhas e bolas de gude. Minha preferência era pelos olhinhos. Pequeninos, rajados e leitosos. Dessas eu gostava mais, mas qualquer uma que estivesse dando sopa eu pegava. O importante era ter o saco bem cheio, e mais pesado que o dos outros garotos.
O ruim nessa fase foi que tia Orquidéa não mais permitiu que, com meu pretextado medo das almas do outro mundo, subisse em sua cama. Tive que voltar a dormir no chão, lá no meio deles.
Não guardo muitas lembranças. Ainda bem, não seriam boas. Lembro mais de quando fui me tornando rapaz.
Mesada nunca soube o que era; adolescência, não conheci. Quando alguém na rua falava sobre isso ou aquilo que tinha lido no Tesouro da Juventude, eu fazia cara de aprovação. Mas nem a capa dos livros eu vira. O que lia, quando lia, era O Radical, um jornal getulista que só falava de miséria e pobreza. Eu comprava porque era barato, e trazia o resultado do bicho e do futebol. Aliás, esta era uma outra qualidade minha, o futebol. Driblava, chutava bola parada, em movimento ou de primeira. Como viesse eu enfiava. Metia o meu, fazia o meu nome e no máximo vinte minutos depois, saía. Não gostava de marcar. Não tolerava que encostassem em mim, tinha asco. Já imaginou ter de parar e me agarrar com aqueles crioulos suados, cheios de músculos? Não era para mim.
Dizia aos meus avós que estava estudando com um colega e o pai na casa deles, que iria dormir lá, mas na verdade ia, com amigos mais velhos, ao dancing. Eu tinha tanta barba que passava por mais idade. Não quero me prosar, mas eu era um rapaz muito bonito. Rosto quadrado, pele acobreada, cabelos negros sedosos e ondulados, peito cabeludo, bons dentes – iguais aos da minha mãe – só faltava, e me falta ainda, um pouco de altura. Para isso dei um jeito: desde aquela época, aumento um centímetro e meio nos saltos do sapato. Não ponho dois, porque dá na pinta.
Minha avó, percebendo que não queria nada com o estudo, disse que assim não era possível, eu teria que trabalhar. Arranjaram-me um emprego no Instituto. O trabalho na repartição consistia em abrir e fechar muitas gavetas e armários, encontrar a ficha e dar informações aos aposentados que lá iam saber de seus caraminguás. Insuportável ficar trancado na repartição até às quatro da tarde só atendendo velhos. O sacrifício era compensado por uma secretária que trabalhava e era amigada com o chefão. Como sempre dei sorte, bastou me ver para cair em suas graças. Passei logo a comer.
Uma tarde, estou lá de saco cheio, atendendo aos velhos que chegavam em quantidade, quando recebi o recado. Que largasse tudo e fosse imediatamente ao gabinete do diretor. Fiquei gelado e pensei, pronto, o homem descobriu. Mal começo, já estou despedido. Coloquei a plaquinha Volto Já em cima do balcão e fui ouvir o esporro. Ao entrar, ele foi gentil. Disse Boa tarde, sorriu educado, abriu-me uma outra porta, apontou para Lucila, que lá dentro, recostada em um sofá, chorava inconsolável, e completou: Vá lá, fale com ela, ela não pára de chorar e só fala no seu nome. Lembrei no ato: Lucila tinha me visto com uma garota do andar de baixo, bem mais nova que ela.
Três dias antes, passou pela calçada da Biblioteca Nacional, ali perto, e nos viu sentados em um dos bancos do jardim. Eu estava com a mão no ombro da pequena, tentando convencê-la, mas a coisa estava difícil... Tranquei a porta, disse você é uma boba, somos apenas colegas, não há nada entre nós. Dei-lhe uns beijinhos, me certifiquei da porta trancada e comi ali mesmo, no sofá. Ao sair, deixei-a calma. O diretor, ao apertar-me a mão, agradeceu por eu ter ido. Malandro esperto, sabia que é melhor ficar com uma parte do que perder tudo...Após três meses, o corno me obrigou a usar um uniforme cáqui onde na gola apareciam bordadas as letras IAPC. Pedi demissão. Como é que eu podia ficar em um lugar desses?
SEGUNDA PARTE
Desempregado, ia para a esquina de manhã e ficava na porrinha, sempre com um palito ou um níquel a mais escondido entre os dedos para uma eventualidade. Sentado no botequim, apreciava a mulherada subir no bonde. Coxas, via sempre. Às vezes, umas calcinhas. Apostava também nas placas dos carros que passavam. Par ou ímpar no final?
Normalmente ia na hora, para garantir. Mas se fosse para casa depois do meio-dia, antes passava na quitanda e comprava dois ovos. Não batia no bico, ao meio-dia e meia, do ensopadinho só sobrava algum caldo e uma ou outra batatinha. A carne picadinha já era. O jeito era minha irmã raspar a panela, misturar o arroz e a farinha ao caldo, fritar os ovos e colocar por cima. Eu não chiava. Quando chegava antes, também fazia como eles. Aliás, se dependesse de mim, quem se atrasasse não pegava nem o caldo.
Cedo compreendi como as coisas são. Aprendi que no enterro o dono do defunto é quem pega na
cabeça, ou seja, na parte mais pesada do caixão. Como eu era o único dono de mim...
Para defender algum, comecei a ir ao jogo. Qualquer um. No baralho, ronda, monte inglês e sete e meio. E mais sinuca, caipira – um paga cinco, cinco vinte e cinco – bicho e dados. Ia também a uma curiosa roleta naturalmente viciada feita com uma roda de bicicleta, nos fundos da fortaleza. Se aparecesse mais, eu estava lá. Sempre fazendo uma truta com um e salvando o meu com outro. Duro eu não podia ficar.
Com os amigos Waldir e Dario formei uma trinca, a DDD. O lema era Amizade Acima de Tudo. Se um brigasse, todos brigavam; o que um tivesse, todos teriam. Alugamos um quarto, nos fundos de uma casa logo ali na Chave de Ouro, no começo do Engenho de Dentro, para botar e bancar jogo. Assim, além de roubar os trouxas que chamávamos, engrupia também os parceiros. Uma hora me juntava ao Didi para, nas cartas marcadas roubar o Dario; outra, quando estava dando na vista, me juntava ao Dario para rifar o Didi. Isso quando não entravam em ação os meus dados chumbados. Eles tinham mais! Por que não dividir comigo, eu que não tinha nada?
O lugar era tranqüilo. Havia uma entrada independente, não precisava nem falar com a dona, uma velha escrota que para se mostrar importante e não me dar confiança, embora sabendo que meu apelido era Dinho, de Candinho, só me chamava de seu Cândido. Se dizia prima do Getulio, a vaca. Era para lá que, quando não havia jogo, eu levava as coroas que apanhava no Méier. Na Amaro Cavalcante, onde nasce a Dias da Cruz, bem em frente ao Café Londres, subia no bonde Boca do Mato, o 87, dava um passeio de reconhecimento pelo estribo. Examinava banco por banco. Antes de chegar à Rua Aquidabã, ainda na Pedro de Carvalho, já estava sentado coxeando uma. No ponto final, na Maranhão com a Dias da Cruz, piscava o olho e descia. Discrição é tudo. Olhava para trás, lá vinha ela. Eu ia e a dadivosa vinha logo a seguir. Ao chegar, era só empurrar o portão, não havia chave.
No quarto úmido e escuro – a bruaca da proprietária não permitia abrir a janela – eu começava a comer a coroa. Contava uma história que era sempre a mesma: que não tinha mãe, ela tinha morrido há pouco tempo, que minha madrasta ou minha avó – o que desse na telha - me maltratava, que dava atenção aos filhos dela, mas de mim não se ocupava, que não me alimentava direito, eu mesmo tinha de lavar a minha roupa, que os botões da minha camisa caíam e não havia ninguém para pregá-los. Aí abria a gaveta da mesinha de cabeceira, mostrava um retrós com uma agulha espetada, furtados da caixa de costura da minha avó. Essa era infalível! Que não tinha emprego, ninguém empregava quem ainda não tivesse o certificado de reservista e por aí ia. Era batata. O sentimento maternal aflorava e elas, que estavam ali pela sacanagem, se emocionavam, se modificavam. Não dava outra. Cheguei a ver olhos marejados.
Me cobriam de beijos, perguntavam se precisava de alguma coisa, davam dinheiro e pediam para voltar. Uma insistia em levar minhas camisas e cuecas para lavar. Eu deixava, é claro. As que tinham telefone, eu anotava o número. Prometia, mas não ligava.
Nessa época, começou o meu gosto pelo cinema. Não pelos filmes, que nunca tive paciência de ficar duas horas à toa. Houvesse grana, olha eu lá no Paratodos, no Mascote ou no Cine Meyer. Antes de começar a sessão, zanzava na sala de espera ou no salão até escolher a presa.
Disfarçadamente, ia aos espelhos, me ajeitar. Corrigia o penteado, levantava a gola e esticava a camisa para dentro das calças. Aparência é tudo. Esperava as luzes se apagarem e ia me sentar ao lado da eleita. Noventa por cento das vezes dava certo. Mas o azar existia. Em uma matinê, me dei mal, muito mal. Fui devagarinho encostando o braço, me aproximando. A mulher, não sei, mas acho que estava muito entretida com o filme, tanto que, ao perceber que já tinha seu pescoço envolvido, não pensou duas vezes: me deu uma bofetada que fez o maior estalo. Ante a possibilidade de ela se levantar, gritar tarado! e a platéia me linchar, com a cara ainda ardendo, levantei-me e disse alto para que todos ouvissem: “E a senhora saiba que quando chegar em casa vai ter mais!” A mulher ficou muda e paralisada na poltrona. Me piquei rapidinho.
De novo, lá ia eu no bonde. O Piedade também era muito bom. Vinham nele as que trabalhavam na cidade. Eram mais elegantes, escoladas, e um pouco mais difíceis. Mas sempre consegui alguma coisa. O melhor do 77 é que ele tinha um ponto pertinho do quarto...
Faltavam oito meses para sentar praça, me senti mal. Tonteiras e muitas dores. Meu avô me levou à Assistência do Meyer. Fizeram-me radiografias e me mandaram ao hospital. A coisa era grave. Eu teria de fazer uma operação. Surgiram no rim esquerdo umas pedras. Internado, lá fui ficando até chegar a hora da cirurgia. Todo santo dia – era um hospital religioso – eu era visitado por uma irmã-de-caridade que fazia as vezes de meia enfermeira. Levava-me a Bíblia, lia um pouco, acariciava minha testa e dizia que eu não me importasse, que Deus, na hora agá, estaria comigo. Colocava-me o termômetro, dava-me água, comprimidos e me olhava com doçura, alegria e otimismo. Cheguei a compará-la a uma santa. Eu estava com muito medo. Não sei o que acontece comigo. Ainda hoje, sempre que tenho medo, viro outra pessoa...
Já disse que, na minha família, cristão mesmo só o meu avô e minha avó? Muito embora, todos os dias, às seis da tarde, o rádio ligado na estação, ela rezasse a Ave-Maria ajoelhada em frente ao oratório – eu só pensava em surrupiar um daqueles santos de madeira! – vivia a espreitar pela veneziana os que passavam. Sabia da vida de todo mundo. Tinha todos na mão, conhecia os podres de cada um. Guardava tudo anotado em um caderno. Com ela, ninguém tirava farinha. Acho que tenho a quem sair. Nesse ponto, sempre admirei minha avó, que era o contrário de seu marido, meu avô. Esse não podia ver uma estampa de santo ou passar na porta de uma igreja. Benzia-se logo. Não passava de um chorão, um banana. A coragem dele se limitava a xingar padres e políticos. Assim mesmo, de longe. Nem Mimosa, a cachorra, o respeitava. Ele dizia “sai daqui”. Quem disse que ela saía?
Esses pensamentos, essas lembranças... Há dias em que acho que mereço um soco na cara.
Os médicos que vieram me ver disseram que ficasse calmo, que a cirurgia seria simples. Apenas abririam e retirariam os cristais. Que não me preocupasse, que tudo estaria bem em poucos dias.
Como disse, lá em casa ninguém dava muita bola para religião. De modo que eu não entendia aquelas gentilezas da irmã, e fui me interessando cada vez mais por ela. Era só se aproximar e passar a mão na minha testa que me vinha uma ereção. Eu não disfarçava, nem para o lado o rosto virava. Não escondia o volume que levantava o lençol, enquanto lia trechos da Bíblia. Queria mesmo que ela visse. Como mulher, não era lá essas coisas, mas, como todas, tinha seus encantos. Bastava não dar importância ao ar e a cara de convento, às sobrancelhas muito espessas e a pele demasiadamente pálida. Já as mãos... que mãos bonitas, delicadas e suaves. Nunca deixou transparecer o que via. Mas sei que via. Fazia para ela ver! Ao se aproximar o dia da cirurgia, aos poucos fui sendo dopado, anestesiado e ela foi deixando de vir. Operado, voltei para a enfermaria. Contando com o dia da internação, eu já estava há mais de dez no hospital. A falta de sexo ardia e queimava. Eu estava aceso!
Como aprendi a ver e me valer da fraqueza do ser humano, me aproveitei da sua religiosidade. Seguramente, ela manteria segredo. Não iria tocar com outras pessoas, e muito menos com as outras irmãs ou superiores, em um assunto desses. Confiante, resolvi avançar mais. Na primeira visita que ela fez para me felicitar pelo resultado da cirurgia, comecei a falar em Deus e no medo de morrer tão jovem, sem ter conhecido a vida. Disse que era virgem de mulher. Acreditei que tocando nesses assuntos despertaria a sexualidade adormecida e acabaria conseguindo que ela me masturbasse. Isso era o que eu queria, esse era o meu plano.
Entretanto, com a mão na minha testa, ela me acariciava como se eu fosse uma criança. Apenas isso. Agia como uma santa distante, inalcançável, que vinha para atender, consolar e aliviar. Eu, ao contrário, fazia questão de demonstrar que recebia essa atenção por outros motivos... É estranho, mas não foi com palavras que fiz com que entendesse que eu sabia que ela poderia ter desejos ardentes e voluptuosos. Afinal, antes de irmã de caridade, era mulher. Fiz força para não rir e falei com mais clareza do medo de morrer virgem. Que já era um homem, não poderia morrer assim. Disse que jamais tinha visto uma mulher nua. Com uma audácia em mim ainda não conhecida, pedi, em nome de Cristo, que ela segurasse o meu pau, uma vez só, uma única vez, pelo amor de Deus. Que eu estava enfermo, não falaria para ninguém, que poderia morrer. Ela arregalou os olhos, foi andando rapidamente de costas, se afastou, virou-se e foi embora.
Nessa hora, cheguei a temer pela sorte. E se eu estivesse enganado? E se ela resolvesse enfrentar a situação, fizesse queixa à madre superiora e à direção do hospital? Eu seria expulso, haveria um escândalo, polícia, quem sabe sairia de lá preso? Não mais a boa vida, as mãos dela em meu rosto e nem comidinha na boca. Mesmo assustado, nesse dia não agüentei e me masturbei.
Na manhã seguinte, eu pensava nela. Quando os dois mulatos fortões se aproximaram, vi que estava perdido. Meu pau amoleceu na hora. Mas não era nada. Substitutos das serventes, vieram apenas trocar os lençóis. Fingi que dormia e os vi resmungando a sorte. Deveria permanecer no hospital mais uma semana em observação e aguardando a cicatrização dos pontos. Estava agoniado, só pensava em sair logo de lá, fugir, desaparecer. Pegar minhas coroas era mais seguro do que tentar a freira. Me senti amedrontado.
Um dia, vejo a porta da enfermaria se abrir. Quem estava lá, vindo em minha direção? Ela, irmã Lucia. Esse era o seu nome. Aproximou-se e como se nada tivesse havido, perguntou sorridente: “Como está indo o meu homenzinho? Dói?” Quando disse “quero ver a cicatriz”, pensei “aí tem coisa”. Virei de lado, ela viu e não falou nada. Fez apenas “hum...” sorriu e pôs a branca e suave mão na minha testa. Como eu queria aquela mão no meu pau! Achou que eu tinha um pouco de febre, disse “abra” e mais uma vez enfiou o termômetro no canto da minha boca. Com gestos suavíssimos – movia-se como um anjo – demonstrou que estava feliz por me ver bem e agia como não se lembrasse do ocorrido.
Enquanto isso, eu ia tendo outra ereção. Fixei meu olhar no dela, e senti seu constrangimento. Desencarou-me e, abrindo ao acaso, iniciou a leitura da Bíblia, que sempre deixava sobre a mesa de cabeceira. Não sei o que me deu. Fiquei tímido e nem segurar o pau por baixo do lençol segurei. Imaginei os pontos se arrebentando, tive medo. Me perdi olhando o teto e ela, ao acabar a leitura, se foi. Despediu-se carinhosa, formal e amavelmente, como convém a uma freira.
No dia seguinte, à tardinha, ao voltar, a coragem me voltou e simulei um delírio. Balançava a cabeça de um lado para o outro, dizia coisas desconexas, os olhos fechados, mas não o suficiente para não poder observar suas reações. Quando colocou a mão na minha testa, e desceu pelo rosto, notei algo diferente. Estava ainda mais pálida e um tanto nervosa. Antes que pegasse seu livro de rezas, com as minhas duas mãos segurei a dela, esfreguei-a na minha cara para ela sentir a aspereza – a barba cerrada de dois dias – e continuei a falar com os olhos semi-cerrados, em falso frêmito. Acho que isso mexeu, deu-lhe confiança, segurança, descontrole, tesão, ou sei lá o quê. O fato é que quando abaixei sua mão direita para dentro do lençol, vi que ela voltou o rosto para o lado oposto, em direção à janela. Notei que na outra mão esmagava um rosário de contas pretas. Com o rosto hirto e levantado, os olhos fechados, balbuciou “seja feita a vontade de Deus”, e deixou sua mão ir e vir.
O cortinado que cercava a minha cama eu já tinha fechado antes de ela chegar. Os outros pacientes não viram nada. Não viram, mas contei. Só que ao contar ampliei e modifiquei. Disse ao que ficava na cama à minha esquerda que a freira era uma devassa. Que ficava alisando os cabelos do meu peito, metendo os dedos entre os meus pentelhos, me segurando o pau e me enfiando a língua na boca. Que falou que se eu não estivesse recém-operado, levantaria o hábito – ela era louca, completei – e subiria na minha cama. Sabe-se lá o que poderia acontecer? Se ela se arrependesse e me denunciasse? Cauteloso, deixei uma testemunha preparada para a eventualidade.
Ela não veio mais. Três dias depois, me deram alta. Liguei para o botequim e pedi ao Cabeleira, o garçom, para avisar lá em casa. Alguém deveria ir me buscar. Frisei que teria de ser de automóvel. Nada dos solavancos do ônibus. Bonde, nem pensar. Tratava-se de uma recomendação médica...
TERCEIRA PARTE
A partir daí, as coisas melhoraram: pela manhã, lá pelas dez, ia para o botequim. Cafezinho, jogo do bicho, porrinha, anedotas e uma ou outra aposta. Sinuca, os médicos disseram para evitar por um tempo. Meio-dia, almoço. Não chegar na hora não era mais problema, ficava guardado. Era tranqüilo. Minha avó sentia pena de mim. Demorasse mais na esquina, mandava minha irmã esquentar em banho-maria. Até mexer no rádio, mudar a estação, usar seu sabonete e sua água de colônia, ela deixava. Fazia mingau e tudo mais que eu pedisse. Depois do almoço, uma soneca.
Esqueci de dizer: minhas tias casaram e se mudaram. Agora eu tinha cama. Ao acordar, um banho, brilhantina no cabelo e o bonde até o Meyer, na busca do mulherio. Desse certo, ia de lá mesmo para a Chave de Ouro. Não sei se pelo fato de, como já ter dito, ser um rapaz atraente, a realidade é que tinha dia de apanhar duas, até três. Eu não tinha, como se diz, mãos a medir. Mas me poupava, estava recém operado. Nessa fase só mesmo as imperdíveis. À noite, um joguinho ou um cabaré. Dançar, só um bolerinho. Como é sabido, ninguém pode viver sem se divertir, não é mesmo?
Assim foi, até que veio o exército. Minha passagem foi curta. Pelo problema de saúde que ampliei e outros que acabei por inventar, saí em oito meses. Não me adaptava. A disciplina me fodia. O sargenteante, um boçal, pensava que mandava mais que o comandante. Os cabos, grossos e complexados. Eu vivia me dando mal. Até que aconteceu o que me salvou: meia-noite, muito calor e mais uma vez eu detido, preso no quartel. Subi a sargenteação e vi o Bira comendo o Elói: “Bonito hein, Elói! Que negócio é esse? Daqui para frente, se não me tirar dessa cadeia e não me der um bom plantão, cagüeto. E você, hein, Bira, comendo esse magrelo? Toma vergonha, seu puto! Vocês têm que me aliviar, é isso que eu quero. Me deixar de serviço nunca mais, canalhas! De guarda, no frio da caixa d’água, ou sentinela na porta do quartel, nunca mais! Plantão de banheiro, no máximo, é o que vocês podem me dar. Plantão de banheiro e olhe lá", ameacei.
Deram. Ninguém vai lá de madrugada, eu pensava. Poderia tirar o serviço dormindo. Mas estava enganado. Surgiram Guerra e Ratinho de Quintino. Guerra era o nome dele mesmo. Ratinho, porque era pequenino e, como os roedores, pegava qualquer migalha que não fosse dele. Cigarros do seu maço, comida que viesse da sua casa, trocados no seu bolso e por aí... De Quintino, porque morava lá. Os dois botavam jogo de ronda e vendiam maconha no banheiro. Oi, tudo bem? Tudo bem. Eu passava com o fuzil no ombro e eles lá. No segundo plantão, perguntaram se eu precisava de alguma coisa, me fiz de boa praça e disse “sim, se tiver algum, bem, se não...” Sorriram e me deram cinqüenta. “Tá bom?”, um perguntou. Meti no bolso e não respondi. Não parava de entrar gente, o banheiro ficava lotado. O movimento varava a madrugada. Toda semana eu queria o plantão e o viado me escalava. Aquilo era uma moleza. Passei a exigir duzentos. Quatro horas terminava, pegava o meu, e ia acabar de dormir no trem ou em casa. A partir daí, me davam o que eu queria. Dessa fase tenho saudade.
Quando dei baixa, pensei: é hora de agir com mais cautela. Vou ter de organizar a vida, acabou a brincadeira. Agora é à vera. Tratei de conseguir o diploma dos primeiros estudos. Foi mole. Meu avô foi ao colégio e convenceu a diretora. Duas semanas depois, eu tinha o certificado de conclusão do primário. Com ele na mão, me matriculei no Artigo 99 em um colégio noturno que havia em Queimados. Não precisaria ir. O diretor era um baixinho, analfabeto, burro e brigão, que me ajudou muito no tempo em que servi. Seu nome? Aristóbulo. Nada mais, nada menos que o Ratinho de Quintino! Ratinho, agora professor Aristóbulo, cansara de vender maconha no exército. Fez concurso para cabo, passou, pediu reforma e deu baixa como sargento, antes que fosse expulso. Aqui fora, com o saco cheio de dar dinheiro à polícia, juntou as economias e entrou, como ele disse, para o ramo da educação. Comprou esse curso e estava indo bem. Pediu quinhentos.
Eu disse “duzentos”, ele virou a cara. Aí falei “tá bom, trezentos e não se fala mais nisso”. Ele sorriu o mesmo sorriso do quartel, agora com o canino no lugar e disse “fechado”. Me abraçou e completou: “É bom fazer negócio com bandido. Bandido é rápido no gatilho.” No dia do exame, me deu todos os resultados. Bom amigo, o Ratinho.
Um bom currículo é tudo na vida. Após o Artigo 99, ingressei no Madureza Prêmio Nobel. Acho que era esse o nome do curso, onde concluí o Científico. O dono dizia sofrer duros apertos financeiros por ser um pequeno empresário do ensino e da cultura. Era amigo do meu amigo. Ratinho falou com ele e resolveu tudo. Meu avô deu três cheques pré-datados.
Preocupado com o futuro, comecei a pensar em casar, constituir família e ter filhos como todo mundo. Um homem casado, como se sabe, é alguém que impõe mais respeito. Claro que não poderia ser com uma dura como eu. De mais a mais, cansara das velhotas, que a essa altura já mereciam outro diminutivo.
Acabei encontrando uma moça bonita. Elegante, muito bem vestida, todo sábado estreava uma roupa nova. Parecia ter dinheiro. Morava na Tijuca, em uma casa assobradada, que tinha até entrada para carro. Namorada, Assumpta falava da sua infância e me contava histórias sobre o pai. A melhor envolvia muito dinheiro. Detalhes, dizia não saber. Assumpta Spancafiglio era uma italiana bem feita de corpo. Alta, parecia uma artista de cinema e não prenunciava a transformação pela qual iria passar. Estávamos noivos quando ela resolveu falar mais: “Eu era pequena quando meu pai desapareceu. Foi para a resistência, fugiu para as montanhas e virou partigiano. Ele era muito bom, juntava a filharada e contava histórias para nós. Nunca mais soubemos dele.”
Nem sempre as coisas saem como a gente quer. Quem me ouviu até aqui, já percebeu que sou um pouco apressado, de modo que como se tratava de um mulherão, como se dizia, comi a sobremesa antes... Os três irmãos, cada um maior que o outro, me apertaram, e acabei casando antes do tempo que previa. Aos poucos, Assumpta ia avançando. Falou que, ao ir com os camaradas, o pai deixara uma fortuna em vinho. Dezenas de milhares de garrafas de bom Chianti e Barolo teriam ficado escondidas dos nazistas. A isso dei mais importância. Empolgado, boa parte do noivado e os primeiros anos do casamento passei em reuniões com os cunhados, a sogra e o seu novo companheiro. Era só aguardar um pouco mais, para procurar o vinho ou o dinheiro do seguro, feito em uma companhia inglesa.
Chegaram a me mostrar uns papéis escritos em inglês e em italiano. Diziam ser os certificados e as apólices. Mas a família de Assumpta era misteriosa. Falavam, mas nada ficava muito claro. A mãe, ao dizer que quando perdeu as esperanças de rever o marido, juntou as crianças e veio, chorou copiosamente. Seu companheiro, um português malandro, só pensava em grana. Chegou a me chamar no canto e combinar uma ida à Itália. Em voz baixa, quase um sussurro, disse que patrocinaria a viagem, para esclarecer o negócio dos vinhos. Nunca saiu do convite. Na medida em que o tempo avançava e eu ia apertando o pessoal para obter mais detalhes, eles iam se confundindo e se contradizendo. Hoje ficou claro que o português entrou e vingou-se armando para os que vieram depois dele. Não posso dizer que não simpatizava com a minha noiva, mas que essa história me ajudou e muito a ir ao matrimônio, por que não dizer? Ajudou, e como!
Houve, é claro, a encomenda antecipada dos gêmeos e, aos primeiros sinais da gravidez, a pronta ação dos cunhados. Daí em diante, Assumpta engordou. Só queria, como só quer, saber de comer. Transformou-se em uma verdadeira mamma. Nunca mais falou do pai nem dos vinhos... Era só eu tocar no assunto que ela ameaçava chorar. Quando o novo namorado da irmã mais velha –, das quatro, só essa faltava casar –, veio me consultar sobre uma certa herança na Itália, respirei fundo e tive a certeza: era assim que aquela velha escrota desencalhava as filhas. Concluí que não estou só no mundo. Desisti do vinho, do dinheiro e, como já estava, fui ficando por lá pela Tijuca. É como eu sempre digo: tentar todas, ganhar as que se pode...
Formei-me advogado. Vou ser mais franco, volta e meia me distraio: consegui um diploma, pois à faculdade quase nunca ia. Devo reconhecer que mais uma vez dei muita sorte: o chanceler de um complexo universitário, por suas atividades anteriores, ligadas ao mercado financeiro, um amigo me contou, devia difíceis explicações à polícia. Mandei-lhe uma carta dizendo que gostaria de conversar sobre o assunto. Ele respondeu me convidando para um encontro. Ofereceu-me um almoço. Muito gentil, não me cobrou o curso, que aliás terminei em tempo recorde. Não fiquei em uma recuperação sequer. Ele queria me ver longe.
Diplomado, eu tinha muita pressa em ir à forra dos maus tempos, mas cadê clientes? Fui a dois escritórios, não me aceitaram. Pouco conhecimento e nenhuma experiência, disseram. A maré estava braba. Desprovido de dinheiro, o negócio dos vinhos uma roubada, avinagrara, eis que, quando desço do lotação Lins-Lagoa na cidade, encontro um cara que conheci na faculdade. Era um daqueles mauricinhos que também apareciam vez por outra, todo arrumadinho e sempre de carro último tipo. Um dândi. Nunca fui com os cornos dele. Fiz-me simpático e o convidei para um cafezinho. Quando quero, sou imbatível. Peguei seu telefone, liguei, nos encontramos e tornei-me seu velho amigo.
Logo confirmei o que suspeitava: o sujeitinho era fácil. Movido apenas a vaidade e ambição. Conheço isso bem. O pai, deputado no interior, conseguira para ele a gerência da Agência Centro do Banco do Estado. Propus, com habilidade, para ele não poder dizer que eu o estava corrompendo, um negócio que, como enfatizei, seria bom para o banco, para ele e para mim. Nessa ordem. Eu faria o trabalho. Me tornaria seu assessor informal. O banco conquistaria novos clientes, ele seria elogiado, promovido, paparia mais algum e eu poria no bolso o dinheiro de que precisava. Nada de vínculo empregatício nem pessoa jurídica terceirizada, ressaltei. Que não se preocupasse. Nenhuma responsabilidade para ele, nenhuma despesa para o banco. Apenas um cartão de visitas. Ele topou e imediatamente comecei a agir.
Com quem eu falava, oferecia empréstimos, descontos, o que fosse, desde que abrissem uma conta. Funcionava assim: procurava amigos e conhecidos de amigos – em dificuldades, e quem pode dizer que não vive em dificuldade? Era só encontrar o pato – e como aparecem patos na vida da gente! Eu perguntava: “Está precisando de dinheiro? Não há problema. Tem ficha limpa? Ótimo. Não tem, damos um jeito. Esse formulário é apenas pró-forma, o gerente-geral é meu amigo. Não demora nada, em coisa de dois ou três dias, o dinheiro sai.”
O dinheiro saía, e o otário necessitado me pagava a comissão de dez por cento. A combinação com o gerente era que eu cobraria cinco, e racharia com ele. De modo que recebendo dez, sem ele saber, eu ficava com sete e meio por cento. Negócio de irmão, eu dizia, e ele com seus dois e meio ficava satisfeitíssimo. Quando os empréstimos começaram a vencer e não serem pagos, como eu já esperava, pois as fichas cadastrais eram, digamos, maquiadas, ele veio a mim. Eu disse: “O que você quer que eu faça? O gerente é você. Quem ganha o salário é você, não eu. Depois, por que eu lhe dou metade da comissão? Para você não fazer nada? Manda protestar. Executa!” Ele olhou para mim e rangeu entre os dentes: “Canalha!” Para encurtar: foi demitido. O filme dele queimou. Vi no jornal que, na campanha do pai, o candidato oposicionista disse que ele tinha um filho ladrão. Agora eu pergunto: ele não ganhou? Não era esperto? Penso às vezes que, enquanto durmo, a humanidade não pára de produzir patos.
Mais tarimbado e, por que não dizer, um tanto assustado com a experiência do banco, consegui finalmente o que queria. Um emprego estável. Fui trabalhar em um grande e renomado escritório de advocacia. O dono o tinha herdado do pai, que por sua vez também o herdara. Ganharam muito dinheiro e fama em falências e concordatas. Eram especialistas. Não perdiam uma, custasse o que custasse. Não sei se estou me fazendo entender... A clientela fora grande no passado, mas com os novos tempos essas causas foram para São Paulo. Quase tudo que representa dinheiro foi-se para lá. Penso que vou acabar indo também. Lá, para um sujeito com a minha habilidade e o meu potencial, é mais fácil, o campo é maior...
No começo não sabia nada, mas jamais pedi um aconselhamento, uma orientação. Surgisse determinada questão, eu propunha uma discussão. Os outros advogados opinavam, eu dizia, Este não é o meu entendimento – ô frasezinha boa! – eles, vaidosos, falavam mais, e eu acabava sabendo o que fazer.
Querendo se expandir, o escritório criou uma banca de advocacia geral. Nessa época eu já o dirigia. Foi aí que conheci o criminalista goiano. Tipo empolgado, metido a entender mais o código penal que o próprio texto do código, desses que vivem a se jactar de um conhecimento que imaginam ter e que só existe em suas mentes megalômanas. O homenzinho era para lá de vaidoso. Mas, uma virtude ele tinha: que mulher, meu Deus! Uma loucura. Não é pecado gostar de mulher como eu gosto. Mas gosto dessas. Não me venham com donas de casa boazinhas, intelectuais duronas ou matronas avantajadas. As primeiras deixei no passado, as segundas não quero nem ver. Das últimas, tenho um belo exemplar em casa. Eu quero saber é de mulher bonita, gostosa.
A do goiano era, e como! Nossas famílias começaram a se freqüentar e fomos ficando íntimos. Assumpta fazia gnocchi, lazagna, saltimboca alla romana, e o goiano adorava. É bem verdade que ele exagerava no Parmigiano Reggiano. Caro, porém fazia parte do investimento. Nesses encontros familiares, pude perceber que era mesmo um grande otário. Aí me desculpem, mas devo revelar uma tese: penso que não existem mulheres ordinárias. Quando o que vou narrar ocorre ou se revela, é a forma que as mulheres encontram para responder aos seus maridos babacas.
Estes sim, existem aos montes. Ultimamente, com essa moda de homem cozinhar – não sei se concordam – como tenho visto bobos, meu Deus! Não demorou muito, eu estava mandando o goiano ao fórum para desencavar processos antigos, difíceis de encontrar, enquanto eu e a goiana rolávamos nas camas redondas dos motéis da Barra. Sempre à tardinha. Alguém pode me atirar a pedra? Atirem aqueles que não conheceram o goiano e, muito menos, a goiana. Por mim, tenho a consciência tranqüila.
Mais maduro, os problemas financeiros no passado, vou tocando a minha vida sossegado. Não sou nem sombra do que fui. Minha maior preocupação é com os gêmeos. Os meninos já estão com dezenove anos! Vão longe os tempos do cordão e da medalha de São Jorge enganchados no colarinho, a fingir displicência. Como andarão o quarto e a velha que nos despejou por falta de pagamento? Existirão ambos? Os bondes acabaram. Cinemas hoje são pequenos e, mesmo apagados, com esses filmes coloridos, são mais claros. Fico aqui a me lembrar das coroas. Se estiverem vivas, algumas já devem ter mais de setenta.
Outro dia, um amigo me levou à casa do sócio. Fui apresentado à mãe dele. Lá, sentadinha em uma cadeira de balanço, a velha me viu e não me encarou. Disse apenas “muito prazer”, deu-me a mão e perdeu seu olhar na janela. Não posso jurar, mas pareceu-me ver a que gostava de ficar de cócoras, em cima do camiseiro. Dobrava os braços, batia-os contra o tórax e cacarejava. Chegou a fazer uma touca com uma pequena crista vermelha em feltro, que imitava perfeitamente a da ave. Ao descer do armário, beijava meu corpo da cabeça os pés antes de se dar aqui para o moreno. Depois, de bruços, dizia “vem meu galinho, vem.” Endovenosa ou intramuscular, preferia sempre por trás. Ao me despedir, dei-lhe a mão, pisquei o olho e, baixinho, ao fingir beijar-lhe a face, fiz no seu ouvido, para que só ela ouvisse: "có-có-ró-có..."
A vantagem das coroas é que gozavam rápido e não havia muito papo. Não queriam saber de muita conversa e iam logo aos finalmentes. Estavam lá para trepar, trepavam com vontade e eram competentes, naturalmente. Coisa que sempre gostei e me divertia era observá-las. Algumas tinham a pentelhada farta, que vinha do início do períneo, subia, se abria gigantescamente de uma virilha à outra e, em linha quase reta, pouco ultrapassava a linha do topo do púbis, no melhor estilo Asa de Morcego. Lembro de uma que a tinha em forma singela e incomum. Menos laterais que a Asa de Morcego, os pelos não alcançavam as virilhas. Vinham também lá de baixo e formavam o triângulo. Do topo deste, invertido, subia um outro pelo ventre, afinando e indo morrer penugem, quase a zero próximo ao umbigo. Com os seus dois triângulos opostos e unidos pelas bases, poderia chamar esse modelo de Brasília. O jeito é todo de uma coluna do Palácio da Alvorada.
Havia também o tipo tradicional, com o chumaço denso e uniforme. Eu a comparo ao triângulo isósceles, pois tem dois dos seus lados iguais. Esse nome aprendi em uma das apostilas de geometria do Curso Madureza. Mais tarde, encontrei outras formas. Entre elas, as que lembram um bigodinho a la Hitler, invertido, e ainda me fazem rir. De modo geral, a possuidora é do tipo que, depois da primeira, senta-se encostada na cabeceira, junta e encolhe as pernas, traz o lençol, por cima dos joelhos, até cobrir a metade dos seios, acende um cigarro, dá uma tragada, olha para o teto e invariavelmente vem com aquele papo de que precisamos discutir a relação. Liberada, tem o mau gosto de, ao ir ao bidê, deixar a porta aberta. Treina pompoarismo, pensa que aprende, e faz do ato da trepada uma quase ginástica calistênica. Quase todas, têm-nas muito bem cuidadas, depiladas e aparadas.
De matronas como Assumpta, não falo. É só pensar nelas que vem-me logo um cheiro de provolone. Inadequado, incompatível e enjoativo. Mas, palavra, por essa agora não esperava: um amigo de infância morreu. Tinha a minha idade. Crescemos juntos na vila. Era de fato, uma amizade. Penso que a única em toda minha vida. Não sei o que acontecia, mas com ele meu coração, não que seja duro, amolecia. Moço para se ir, foi cedo demais como meu pai. Era um sujeito bom, alegre e, sobretudo, amigo. Sofri e ainda sofro muito com a sua morte.
Recebi, uns dois meses depois do dia do cemitério, um telefonema da viúva. Nos encontramos. Estava inconsolável, abatida e chorava muito. Não se conformava em tê-lo perdido. Arrependia-se de não tê-lo compreendido; disse que não fora sua amiga como devia. Que ele – agora ela via - era a melhor pessoa que conhecera em toda a vida. Emocionou-se muito e, com o choro dela, acabei me emocionando também – não pensem que sou de ferro! – e choramos os dois a ausência definitiva, a perda do amigo. Na hora de nos despedirmos, nos abraçamos e ainda chorávamos.
Ao abaixar meu rosto, sua boca roçou a minha. O que pude fazer? Ao vê-la com os olhos fechados, veio um beijo que nem de longe nos lembrou o ausente. Demos meia-volta dali da porta de casa que era deles e agora só dela, entramos de novo no carro e fomos direto para o motel, onde passamos a noite. Ela preferiu assim. Ficou com medo dos vizinhos.
Na semana seguinte, foi a vez da amante. Aconteceu mais ou menos a mesma coisa. Bebemos, choramos, lamentamos e fodemos. Não gostei muito quando ainda na cama ela disse que o meu pau, apesar de mais grosso, era menor que o do falecido.
Que culpa tenho se fomos os três buscar o encontro com o amigo que não retornará? É como sempre aconselho aos gêmeos: “Não percam, meus filhos! Quem perde é quem chora.”
12 comentários:
Este é daqueles textos que deixam a sensação de que ler também é uma aventura. Muito bom.
Cadinho RoCo
Bill,
Devorei o conto! Não conseguí lê-lo em partes, porque é absolutamente arrebatador, mas, vamos combinar que o título bem poderia ser "O CANALHA", né não? ... Pena que Chico Anysio já escreveu o homônimo!
Totalmente demais!
Beijo grande e obrigada pelo seu carinho.
Incrivelmente incrível!!rsrsr
Bill ,venha buscar o selo de blog activista no encanto!
elisabete cunha
Olá Bill,
Vim agradecer sua visita em meu blog e aproveitei pra conhecer o seu...mas realmente o conto tá mto grande e não consegui ler a última parte...mas volto...
Adorei...pelo que percebi é uma equipe esse blog???rs
Ou errei?
Beijos e volte sempre que desejar.
Rapaz! Você é responsável por uma pilha de louça na pilha, celular no silencioso e cachorros na porta chorando pra sair há meia hora. Ia dar uma lidinha rápida e terminei indo até o fim! Com você, não tem rapidinha. Ôpa! Confundi com o personagem. Parabéns.
maristela
Bill, adorei esse conto. Quem é esse Chico, que é a cara do comissário Maigret?
Me escreve, gato! Tô com saudade!
Parabéns! É um conto bem longo -mais longo até do que "O causo da pêra", que é o mais longo de todos os posts do meu blog- mas é impressionante!
Passe lá no meu blog e deixe seu comentário!!!
Olá Bill querido.Tudo bem???
Desculpe-me quase não estou entrando no msn,e nem atualizando meu blog com muita frequencia é que estou terminando de me organizar.
Passei para desejar uma linda semana.
Beijokas
Bill,
Tá inspirado, hein? Eu estou lendo aos poucos, vou voltar em breve para saber o final dessa história.
Bjs
Rosana
VAMOS REAGIR!!!!!
Somos um povo de ovelhas.
Nos roubam.
Nos matam.
Não fazemos nada.
Só assistimos.
Que tipo de povo somos nós, que nos contentamos com bolsa família e choro de um presidente vaiado? Gabinete da crise: para quê? Dar as condolências.
Que Deus tenha pena de nós.
Bill, vim retribuir e agradecer sua visita, mesmo que um tanto atrasada, mas tirei umas férias nestes dias e fiquei um tanto longe de tudo. Muito interessante seu blog. Quero ler este conto inteirinho, com calma. Voltarei assim que terminar de responder os comentários do Momentos são... Grande abraço!
Bom demais.
Uma verdadeira odisséia!
Parabéns.
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