lobo e lua

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8.9.11

A porta entreaberta

Depois de um longo inverno, onde ficamos sem postar por motivos alheios à nossa vontade, voltamos agora para prestar homenagem a um de nossos primeiros colaboradores, Francisco Paula Freitas, o Chico PF, aniversariante do dia. Como dizia o grande poeta Vinícius de Moraes, "não adiantam as despedidas. De um amigo ninguém se livra fácil. A amizade, além de contagiosa, é totalmente incurável". Parabéns, velho amigo!

Conto de CHICO PF
(Francisco Paula Freitas)

O que se vê pela porta entreaberta é desolador. Lá está sentado, na beira da cama, nu e imóvel, um homem velho e magro. Curvado. A cabeça inclinada sobre o peito exibe a derrota, o final. Arfa compassadamente, parece calmo e não sofrer. Da calva pendem uns fios de cabelos brancos desgrenhados. Os olhos, não dá para ver, parecem fechados. O claro e transparente olhar azul deve ser agora apenas névoa embaciada. O que terá sido feito dos óculos de grossas lentes e hastes de tartaruga? O nariz, outrora rubro como imenso pimentão, assume pálido a cor de cera do rosto magro, encovado. A boca, vazia de todos os dentes, semi-aberta, não fecha, não ri, não chora. O lábio inferior, de onde escorre fino fio de baba, pende e não há forças para fazê-lo subir. Onde a blague, o impropério, o palavrão, a oração? A grande orelha de abano parece ainda maior.

Silêncio no quarto. Não se ouve um som, uma palavra. Uma frase que seja, de qualquer velha canção napolitana. Os ombros, vê-se melhor o direito, encolhidos, convergem como se quisessem juntar um ao outro. Os braços longos — é um homem alto —, largados, ao se dobrarem fazem os cotovelos apontar para trás. O que um dia foram bíceps e tríceps são hoje carnes inertes, sem tônus, cobertas por um tecido flácido que cobre o frágil úmero. As mãos não mais se retrairão, encabuladas, quando acorrerem para beijá-las na busca da bênção. Espalmadas, apóiam-se no limite do colchão, e os dedos se dobram sobre ele. É certo que não haverá mais abraços.

Pendurada na cabeceira, repousa a bengala de junco com castão de âmbar. Mais serviu para compor a elegância e prevenir ataque de cachorro do que o ajudou a caminhar. Na parede, no centro, em cima da cama, a pequenina pintura oval mostra uma mulher de joelhos agarrada aos pés de uma cruz fincada em meio a um mar revolto. No céu, a palavra Fé.

Não há glúteo. A coluna está enfiada diretamente na cama. Ligado como que saído debaixo das vértebras, é visível uma parte do ilíaco, o osso da bacia, onde vai se encostar o fêmur. A pele muito clara deixa transparecer na coxa marmórea, magra e descarnada, algumas veias azuladas e violáceas. O membro, que não conheceu outro caminho que não fosse o da sua Maria e a ela levou seus dez filhos, é um pedaço de carne sem vida, assentado sobre bagos relaxados e gelatinosos. Não sabe mais existir. O que está lá, e protegeu-lhe o púbis ao longo da longa vida, já não são cabelos, são compridos fiapos brancos sem espessura e vigor. Não cumprem sua função.

No dedo anular da mão direita não está o anel, motivo de alegria e modesta vaidade, um cabochon de ouro e rubi. Os pés, tornozelos bastante inchados, se apóiam em pequeno tapete surrado, estampado em tonalidade vermelha. A cor só faz acentuar a sua miséria, forçando o contraste com a alvura da pele. As unhas encardidas, amarelecidas, não estão aparadas. Quem as cortaria, agora? E ele? Permitiria?

Pode-se ver o cabideiro. Algumas gravatas surradas. Em uma, com o laço ainda feito, espetada como alfinete, reluz a paleta de ouro com pedrinhas incrustadas imitando as cores das tintas. Um suspensório, uns panos e trapos não identificados. Pendurado no gancho de cima, o chapéu cinza de feltro, para o inverno. No armário, junto à umidade e ao mofo, deve o de panamá, para o verão, adormecer e criar bolor. Na cidade, sem chapéu e gravata, nunca. Uma calça, pendurada pelo cós, mostra trazido para fora, o forro de um bolso vazio.As notas do dinheiro não serão mais esticadas, alisadas e caprichosamente arrumadas do valor da menor para a maior. De quem agora os genros tomarão? A velha ladainha: até o fim do mês sem falta etc. etc?

Folgados, dois números maior, os sapatos — marrons, nunca usou algo preto — não o levarão mais às lutas diárias e aos passeios frequentes. Onde andarão? Devem estar embaixo da cama. Há uma semana não os calça. Não sentirão mais as ruas... Os museus, os casebres, os palacetes, as casas modestas, os palácios e as tantas igrejas não mais os receberão.

Já rejeitou a colher de xarope e os comprimidos. Não aceita o termômetro. Ontem deixou que o barbeiro entrasse, mas não permitiu que lhe fizesse a barba e nem lhe cortasse o cabelo. Pediu que se sentasse à sua frente. Quis apenas olhar para ele, um pouco.

Não se vê pela porta entreaberta, mas é possível imaginar algumas névoas em seus pensamentos. Elas podem conduzir a uma fatia de mamão com as pevides; a uma certa caixa com bisnagas e pincéis com os quais e pelos quais viveu todo o seu tempo; a um pôr-do-sol , um crepúsculo, um pregão ao longe; ao crayon ou fusain, seguro entre o polegar e o indicador, braço esticado, um olho fechado, o outro aberto, a servir de escala para roubar à natureza a mancha do esboço... a uma colher de mel de abelhas, uma blague e à oração antes de ir dormir. A doce e inofensiva marmelada a ser protegida dos avanços dos netos escondida lá em cima no étagère... a uma furtiva lágrima que sempre rolou ao lembrar da mãe...

Não quer mais falar, nem abrir os olhos. Está se preparando para o Céu que a vida inteira e ainda agora imagina existir. Sabe que lá vai se ter ao lado do maior amigo, o Mestre, o Cristo. Vai rever velhos pintores, músicos, sapateiros, cantores, alfaiates, escultores, jardineiros, filhos, os mortos e os vivos, pais, amigos, peixeiros, poetas, doutores, barbeiros, juízes, padeiros...

Vai, convicto, encetar nova viagem, agora no rumo da vida eterna na qual sempre acreditou.

Seja.

Publicado em "Café e Bar Ponto Chic", Editora Bertrand Brasil, 2003.