Conto de Chico PF(Francisco Paula Freitas)– E como poderia esquecer? Você era uma boa bisca, tomava todos os meus namorados. Primeiro foi o Nathanael, filho do tio Curiácio. Não, não era o mais velho, era o do meio, aquele mais moreno, forte, que passava as férias lá em casa; depois foi o Abílio, do seu Serafim, o farmacêutico lá de Mata Cavalos. Teve também o Nico do cartório, primo do Quincas Macieira, o pianista; foram tantos que você me tomou... Você com aquela sua carinha de songamonga chantageando papai o tempo todo só porque tinha tido a “espanhola”, já estava mais do que curada e ficava fingindo, dava aqueles desmaios... Eu te perdôo, você era muito levada. Bons tempos aqueles, não eram, Neusa?
— Se eram; mas isso faz muito tempo! Você também era bem sonsa. A propósito, você está com noventa e um, não é?
— Está maluca? Como noventa e um se eu sou apenas dois anos mais velha que você e pelo que eu sei você está com oitenta e oito? Por Deus Nosso Senhor, por que não perde essa mania de querer me fazer mais velha do que sou?
— Não, Cota, oitenta e oito teria o mano Sylvio se estivesse vivo, que Deus o tenha, e eu sempre fui mais moça do que ele, um ano.
— Então você quer dizer que tem oitenta e sete e eu noventa e um? Não é possível, pode ser até que eu tenha mais de oitenta e nove, mas ainda não fiz noventa e um mesmo! Minha memória anda fraca esses dias e minha cabeça não está lá muito boa para contas, depois, não sei por quê, sempre que a gente conversa, você vem com essa sua mania de falar de idade. Pare com essa teimosia, Neusa, já lhe pedi, encoste um pouco mais a veneziana, o sol está muito forte, me passa esta linha. Haja paciência! Louvado seja o nome de Nosso Senhor Jesus Cristo.
— Para sempre seja louvado, mas teimosa é você, Cota, e não vou passar linha nenhuma. Deixa de ser mandona. Se quiser, venha buscar ou peça por favor.
— Lembra-se do... Como era mesmo o nome dele? Aquele empregado do tio Manduca, o... Ah! Lembrei, o Charles! Ele não usava sapatos, não havia para o tamanho dos seus pés. Era muito engraçado, negro que só ele com aquela beiçola e aquela risada banguela. Era americano, começava a contar, via que não entendíamos, apontava para o céu, gesticulava e dizia que já tinha andado de aeroplano. Não falava quase nada da nossa língua, e assim mesmo tia Isaura mandava ele às compras. Na volta, vinha sempre meio grogue e com quase nada do que tinha ido buscar. Quando titia reclamava, ele ria sem parar. Vivia fazendo patacoadas.
— Diziam que fora marinheiro, tomou uma carraspana e perdeu o navio que voltava para a terra dele. Sem documentos, foi parar no Pedregulho, lá onde o Judas perdeu as botas. Tio Manduca, que era da guarda-civil, ficou com pena, o acolheu e o trouxe para casa.
— Que fim terá levado?.....
— Não sei não, acho que pelo tempo já deve ter morrido.
— Falar em morte, sabe quem está muito mal? A Castorina. Não bastasse a artrose. Reparou nas mãos dela? Depois que o Rosas se foi, ela começou a definhar, definhar, e já não anda. Fica só naquela cadeira. Agora parece que vai ter de ser internada. Eu bem que queria telefonar para ela, mas com este telefone novo é muito difícil, a ligação nunca se completa. Parece estar sempre escangalhado... A filha, aquela sirigaita, sempre viajando, não pode ficar com ela. Tão moça, coitada, ainda não fez oitenta anos e está nesse vai não vai.
— Você sabia que eu flertei com o Rosas? Foi na festa da cumeeira da casa da tia Alice... Ele era bonito que só. Tinha uns sorrisos...
— Sabia sim. Você achava que nós éramos bobas, pois sim.
— É, mas por esta luz que me alumia, namorávamos só com os olhos. Se eu lhe pedir uma coisa, você jura que faz?
— Só com os olhos, uma figa! Bem que ele fazia aquele olhar de songamonga, mas não diga isso que Deus te castiga. Você vivia abarracada, pensa que eu não via? Naquele convescote da Quinta da Boa Vista eu tive que dar uma volta enorme com a mamãe, que Nosso Senhor a tenha, para que ela não visse você e aquele tal de Antenor Galalau, lá perto do lago, atracados... Faço, diga o que é. Eu também namorei muito e sei o que é isso. Sabendo levar, a vida é muito boa. É como eu sempre disse, se você quiser ser feliz, seja.
— Não, não desvie, eu quero é que você jure que vai fazer o que eu vou pedir. Mas tem que jurar!
— Fale logo, Neusa, eu juro, quero que Deus me cegue.
— Quando eu morrer, você não vai me deixar ir no caixão sem pintura. Promete? Jura?
— Que coisa mais mórbida! Por que isso agora? Você está com saúde. Que idéia maluca é essa? Quem disse que você vai morrer? De onde tirou esse pensamento? Essas coisas não acontecem assim tão de repente, Neusa. É bem verdade que já estamos entradas no tempo. Mas, já que você tocou no assunto, pensando bem, podemos fazer uma combinação: se eu for primeiro, você terá que fazer o mesmo comigo, eu também quero ir bem bonita. Além disso, não sei se é verdade, mas, Deus me livre e guarde, ouvi dizer que em algumas pessoas a boca não fecha mais quando morrem e... você sabe, depois que o Emílio me fez esta prótese... Só se amarrar um lenço para manter a boca fechada, senão... pode cair, já imaginou? Que vergonha!
— Está bem, mas ah! meu Deus, para que você foi se lembrar disso, se acontecer comigo, você não deixa, Cota, por amor a Deus, dá um jeito, mas lenço em mim, não. Vou ficar horrorosa; nunca fiquei bem nem de lenço nem de chapéu. Lembra que quando eu colocava qualquer coisa na cabeça, eu ficava feia, estranha. Existem pessoas que não podem colocar nada na cabeça, já outras, não só podem como ficam muito bem. Mamãe mesmo, que Deus a tenha no Reino dos Céus, era uma dessas, ficava linda de chapéu... Mas, em último caso, você vê qualquer coisa. Quem sabe um daqueles estampadinhos, amarrado no queixo, tipo camponesa, como o que eu usava na praia, no período que passamos na casa que papai alugou no Caju? Sempre fui caprichosa e acho que ainda o tenho. Lembro de você tão pálida, tão magrinha, se não fosse o iodo daquelas águas acho que não resistiria ao linfatismo. A ideia do doutor Salles em nos mandar para a praia foi que lhe salvou. Lembra-se, mana?
— E como, mana, e como! Mas que friagem, está um vento danado. Você não sente frio não? Assim vou me constipar. Fecha este postigo.
— Não fecho nada. Se quiser, levante você, ou peça por favor. E sabe o que mais? O diabo que te carregue!
Publicado no livro "Café e Bar Ponto Chic" - Editora Bertrand Brasil