
Chico PF
(Francisco Paula Freitas)
Caía a tardinha, lá vinham os dois. Às vezes de ônibus, quase sempre de bonde. Ele, empertigado em sua magreza, chapéu na cabeça, gravata com laço grande e bem folgada ao pescoço, sentado, a bengala entre as pernas, de vez em quando cruzava as mãos sobre o seu castão e apoiava o queixo pontudo.
O menino lia em silêncio os cartazes do veículo e vez por outrafazia uma pergunta que o velho respondia escondendo um meio sorriso, achando graça e gostando da curiosidade esperta do neto.
Chegavam. Na porta da vila, antes de entrar, ele se voltava à igrejinha que ficava logo ali, no final da elevação da rua, tirava o chapéu, encostava-o ao peito e balbuciava umas palavras a Deus, que o menino, embora não entendendo o que significavam, respeitava silenciosamente. Nesses momentos, o garoto olhava para o avô e percebia, em seus olhos, lágrimas, que vinham da comunicação entre eles, ambos deuses.
Cumprindo o ritual, entravam na vila e, uns quarenta passos depois, estavam em sua casa. O velho balbuciava novas palavras incompreensíveis ao quadro do Cristo pregado no alto da parede, em frente à entrada, tirava o paletó e mantinha a gravata afrouxada. Fazia umas graças aos presentes e, em seguida, sentava para a sua pequena refeição.
A filha mais velha, que ansiosa os aguardava, beijava-o, despedia-se dele, dos irmãos e da mãe, pegava o seu menino que acabara de chegar e iam embora. Isto era uma rotina. Mas esta era uma outra história.
Naquele dia, já eram quase oito horas da noite e ainda estavam na rua. No bonde aceso e barulhento, que, com a luz amarela, iluminava a rua larga e escura por onde passava, iam o avô e seu neto pelo sertão carioca.
Na zona rural, as ruas mal iluminadas ajudavam a lua cheia a flutuar bem baixo, quase ao alcance da mão. Apesar do verão, o veículo aberto, em ligeiro movimento, dava frescor e tornava a viagem agradável. Menino e velho iam em silêncio. Nas curvas que fazia — viajavam no reboque — o bonde, volta e meia, deixava entrever a lua. O que para o avô era poesia, encantamento, uma lembrança talvez, para o menino era uma novidade. Sair de noite. Que bonito era o luar na roça, como podia ser grande a lua!
O episódio ficou gravado na memória do menino, pois a aventura não era comum. Na rua ainda àquelas horas! A claridade do luar iluminando os amplos capinzais entre as casas espaçadas, uma aqui, outra ali, que no sertão era assim, o bonde, serpenteando devagar, a mão amiga, segura e morna do avô em sua mão, eram coisas que iriam ser de difícil esquecimento. No dia em que aprendeu o significado da palavra esplendor, lembrou-se daquele momento.
O menino, agora pai e homem maduro, visita o primo. Conversam, falam da infância, do passado e bebem. Entre umas e outras, o primo diz:
— Sabe aquele retrato do nosso avô, que ficava na sala de jantar? Está comigo.
A despeito de já se terem ido mais de trinta anos, não era difícil provocar a memória. Havia de fato, entre outros, um retrato do avô pintado a óleo por um consagrado pintor alemão da primeira metade do século passado, que vivera na região serrana. O quadro era de alto valor artístico. Além disso, valia um bom dinheiro.
A tela é trazida à sala. Estava sem a moldura original, que o cupim dera cabo. Ambos, em silêncio, olham o quadro que acostumaram-se a ver quando meninos. Ali estava o rosto de um homem moço, que teria de envelhecer para se tornar o avô do menino que ainda iria nascer, conhecê-lo e amá-lo.
Mas lá no retrato já estava definido o perfil que o acompanhou até o fim da vida: o grande nariz de Dante, romano, adunco, e o queixo pontudo, um tanto prógnata, comum aos bruxos.
O primo, de supetão, diz:
— Leve, é seu. Ele gostava mais de você.
Era verdade e ambos sabiam disso. Aceitou em silêncio e, mais emocionados, beberam mais. Saiu feliz com a tela e lembrou que deveria homenagear o avô. Uma boa e adequada moldura deveria completar o retrato e ele trataria logo de encomendá-la.
Quis o destino que um dia, ao voltar para casa, passasse, por acaso, naquela rua do sertão carioca que, por mais incrível que possa parecer, sem grandes transformações, está praticamente igual à em que, de bonde,viajou com o avô, na linda, fresca e inesquecível noite de luar. Continuam lá os matagais entre as casas espaçadas, uma aqui, outra mais adiante. A lua está lá, brilha reluzente e derrama prata sobre o capim-navalha.
O que há tempos foi menino vai conduzindo o automóvel em direção à sua casa. Relembra e reconstitui a antiga viagem. Já não existe mais o bonde, o frescor daquela antiga noite é substituído pelo ar-condicionado do carro. Não consegue conter a emoção quando, em um repente, lembra que o velho avô viaja com ele.
Não passa agora de um retrato embrulhado no porta-malas.
Do livro "Café e Bar Ponto Chic"- Editora Bertrand Brasil