lobo e lua

lobo e lua

8.9.10

Ídolo

Chico PF
(Francisco Paula Freitas)

O pior, amigo, é que a gente só chama a polícia depois da porta arrombada. Eu não precisava passar por nada disso, de puxar cadeia, sujar meu nome e quase estragar a minha vida. Tinha ali mesmo do meu lado, como exemplo, o meu pai, Jorge Veneno, que eu posso até estar errado, mas nunca vi ninguém mais malandro que ele.

Eu era filho único e, quando era pequeno, ainda não sabia nem ler, já ajudava minha mãe a separar as muitas letrinhas daquelas massinhas de fazer sopa. Era demorado, vinha muito a-e-i-o-u, mas as letras dele eram mais difíceis, o J então! Tem poucas palavras com a letra jota, não é, doutor? Acho que é por isso que vinham poucas. Em cada meio quilo só umas trinta ou quarenta, já do V vinha mais...

É isso mesmo que eu estou dizendo ao senhor: minha mãe fazia sopa de letrinhas para o meu pai só usando o J e o V, que são as iniciais do nome dele. Não jogava o resto fora, com as que sobravam, em outra panela, ela fazia para nós. Na hora dele jantar eu ficava de antena ligada só para ouvir a conversa, mas não pegava quase nada. Só dava para perceber que eles eram felizes porque riam muito. Agora eu pergunto: isso é ou não é malandragem? Ter uma mulher que faz sopa de letrinhas só com as iniciais do seu nome!

O doutor precisava ver a alegria dele tomando aquela sopa, que a velha caprichava no tempero, com cebola, alho, tomate, e tinha sempre um pedacinho de paio. Isso nunca faltou. Hoje eu fico pensando naquele crioulão de quase dois metros, rindo e feliz, tomando sopa, só com as suas letrinhas J e V.

Papai era lustrador de profissão. Ele mesmo preparava o verniz com a goma-laca asa de barata, a cola de madeira e o breu. Fazia no fogão lá em casa mesmo. Minha mãe vivia brigando por causa do cheiro. Era horrível. Depois que inventaram esse negócio de envernizar com pistola ou verniz sintético, e qualquer um passou a ser lustrador, aí a coisa apertou. Não havia mais quase trabalho. Foi uma pena. O velho era brilhante. Gostou dessa, doutor?

Às vezes eles mandavam eu comprar qualquer coisa. Sabe como é, o barraco era pequeno: cozinha, sala, quarto, tudo junto. Naquele tempo a barra era pesada, não era essa moleza de tijolo e telha, era caixote e zinco mesmo. Outro dia vi em uma revista no barbeiro que os bacanas agora também têm apartamentos assim, quarto, mesa, cama, armário, latrina, tudo junto. É um tal de lófiti. Não sei por que os ricos têm essa mania de imitar a gente... A gente faz por necessidade.

Como eu estava dizendo, mandavam eu comprar vela, sabão e querosene. Quando tinha querosene, que era mais longe, eu desconfiava, me demorava mais ainda e aí eles tinham mais tempo, não é? O doutor está me entendendo...

Vou lhe dar mais uma do meu pai. Ele nunca soube a diferença entre um pé de alface e um de couve; entre uma dália e uma margarida. Não é que ainda assim conseguiu que arranjassem para ele um emprego de jardineiro no quartel de São Cristóvão? Lábia e lero é com ele mesmo. Ainda bem que lá não tinha flores nem horta. O trabalho era cortar a grama do campo de futebol, fazer as beiradas, os cantinhos e os arremates nos outros gramados. Isso, inteligente, ele aprendeu logo.

A grana não era a mesma de antes, mas sabe como é, não é, doutor, pouco com Deus é muito. E depois era garantido, tinha segurança. Como milico gosta de grama, doutor! Era tudo verdinho, às vezes ele me levava lá. Mas olha só, meu pai sempre foi vaidoso, ia para o trabalho todo embecado, que minha mãe fazia de tudo para ele ficar bonito. Terno branco só tinha um, mas sempre muito bem lavado e passado. A velha caprichava no tanque, na goma e no ferro de carvão, e lá ia ele todo elegante. Chegava no quartel, tirava o terno e o sapato bico fino, colocava o macacão e o tamanco, e já pra luta!

Ele tinha um armário com cadeado e deixava tudo lá, guardado. Trabalhava de sol a sol com aquela máquina manual de cortar grama, aquele tesourão e uma pequena enxada de mão, para fazer as beiradas e os cantinhos.

À tardinha, tomava seu banho, ia ao armário, abria o cadeado, e saía todo bem vestido novamente. Mas não é que tem sempre alguém invocando com a cara da gente! Um dia ele ouviu um papo de que um novo capitão, um branquelo de merda, teria comentado que esse tal de Jorge Veneno era muito metido a besta, que esse negócio de jardineiro andar de terno e gravata não era coisa que o Exército deveria permitir.

Disse também umas outras coisas que fizeram o velho sentir que iria dançar logo, logo. O quartel inteiro já comentava a antipatia do capitão pelo meu pai, quando um dia... Eu estou lhe enchendo o saco, doutor? Se quiser eu paro.

Não? Então, como eu ia lhe dizendo, um dia o capitão, ao chegar ao quartel, depois de responder à continência do sentinela, andou uns quatro ou cinco passos e caiu fulminado. Morto, mortinho da silva; colapso cardíaco, doutor. Bateu com as dez.

No dia seguinte ao acontecido, meu pai demorou a voltar e, ao chegar em casa, estava muito suado, pois vinha carregando um embrulho enorme. Quando abriu em cima da mesa, mamãe quase deu um ataque e gritou, Jorge, tira isso daqui! Sabe o que tinha dentro, doutor?

Imagens de Exu, de Nanan Buruquê, de Xangô, de Iemanjá e da sua mãe Olokum, de Ogum Xoroquê, o Seu Tranca-Ruas, de Omulu e do Zé Pelintra, por quem meu pai tinha uma especial simpatia, acho que mais pela elegância do que pela fé. Também lamparinas, folhas de papel crepom vermelhas e pretas, fogareiro de barro, tigelas, uns galhos de andiroba, umas velas grossas e outras finas, caixas de fósforos, charutos, uns ferros e uns saquinhos com uns pós estranhos.

Nós somos pobres e pretos, doutor, mas os velhos são tementes a Deus. Lá em casa não tem nada disso de macumba, não. Houve uma época em que mamãe tinha muita dor de cabeça. Minha tia disse que ela estava com “encosto”, que ela era médium e precisava se desenvolver. Pra quê!? Mamãe ficou um tempão sem falar com ela. Mamãe foi, bem dizer, criada por uns alemães que nunca quiseram saber dessas coisas. Depois que o velho explicou tudo a ela, foram dormir.

Dia seguinte, papai, bem cedinho, mais cedo que nos dias comuns, acordou, pegou tudo, embrulhou de novo e levou para o quartel. Aí, dentro do seu armário, fez um gongá caprichado. Arrumou os santos, as tigelas, as velas, as plantas, a lamparina, tudo de modo a parecer um canjerê. Feito o serviço, passou, daí em diante, a esquecer, de vez em quando, de trancar o cadeado...

Sabe como é, não é, doutor? Se hoje todo mundo já bisbilhota tudo, imagina antigamente, no tempo da revolução? E ainda por cima, dentro do quartel do exército! O velho nunca mais foi trabalhar de terno nem de sapato bico fino. O armário não era grande, e depois que virou gongá, não cabia mais sua roupa. Também por um pouco de receio. Acho que ele não queria misturar a roupa que usava com aquelas autoridades.

Resultado: os soldados, sargentos, capitães e o próprio comandante passaram a ter o maior respeito pelo meu pai. Agora eu lhe pergunto, isso é ou não é malandragem? O que é que o filho de Jorge Veneno, um cara como esse, foi fazer com aqueles merdas daqueles ladrõezinhos?

O filho da minha irmã, meu sobrinho. Ah, não lhe falei. Por conta daquelas compras que eu fazia, principalmente a do querosene, acabei ganhando uma irmã, que agora tem esse menino. Mas os tempos estão mudados, doutor, o garoto, com seus seis ou sete anos, logo enjoou de ajudar a avó a catar as letrinhas. Prefere ver filme de monstro na televisão, não sei qual é a graça. Eu não moro mais com eles, mas mamãe ainda está lá, velhinha, mas está.

Ainda este ano, no aniversário do velho, eu fui. Ele estava todo prosa, com uma camisa branca nova presenteada e engomada pela velha. O bolo do parabéns foi à tarde. Ela não faz tanto a sopa, como fazia antigamente, mas o aniversário não deixa passar em branco. No almoço teve, só para ele. Pude ver alguns “as” e “eles”, além dos “jotas” e dos “vês” de Jorge Veneno. É que o A, de cabeça para baixo, se parece um pouco com o V, e o L, invertido, para quem já não está enxergando bem, pode parecer um J.

Nem minha mãe nem o velho percebem e, como o senhor sabe, o que os olhos não veem o coração não sente, não é, doutor? Hoje, papai está aposentado. Não usa mais terno branco nem sapato de bico fino. Vive de pijama e chinelo. Sai às vezes, toma sua cervejinha, joga sueca com os amigos e mais não faz. Dorme cedo.

De vez em quando, vai ao quartel abraçar os velhos amigos. Todo mês, lá pelo dia cinco, chega à casa dele um soldadinho. Leva, dentro de um envelope, com um bonito emblema verde e amarelo, escrito por fora, Ao Senhor Jorge Veneno, uma graninha. Deixa sempre lembranças em nome do comandante e de todos do quartel.

Meu cunhado agora é quem corta a grama.

O gongá ainda está lá.

Publicado em "Café e Bar Ponto Chic", Editora Bertrand Brasil.

1.9.10

Lennon e o verificador de palavras

Esta é a minha leitura dos últimos dias. Uma verdadeira enciclopédia sobre John Lennon, mais de 800 páginas, porém uma delícia para beatlemaníacos. Em breve, publicaremos aqui uma resenha sobre o livro, de uma blogueira amiga que já leu tudo. Eu ainda tô na metade. Mas o que já li me permite recomendar.

Aproveito pra pedir aos blogueiros amigos que eliminem o tal "verificador de palavras", que surge quando vamos fazer comentários. É uma coisa desnecessária, que só nos faz perder tempo. Basta ir nas suas "configurações" e clicar em "não" na opção "verificação de palavras". Muita gente vai me agradecer depois, hehehe!

E, finalmente, uma dica: prestigiem o blog "Le Matinée", criado pela minha amiga Natalia, para cinéfilos da blogosfera. Fui convidado para escrever lá e fiz minha estreia com uma resenha sobre um de meus clássicos favoritos, "Ladrões de Bicicleta". Apareçam! É só clicar aqui: